sábado, janeiro 14, 2017

CURSO "MIGUEL CORTE REAL" - A ENTRADA

 A década de 60, do século passado, veio introduzir assinaláveis alterações na pacatez nacional, decorrência natural de uma certa rotina, social e política, então identificada no percurso da Europa, rumo ao futuro. 
 A estabilidade política europeia, apesar da Guerra Fria, ou talvez por causa dela, assentava, naturalmente, no equilíbrio dos blocos construídos no pós-guerra e permitia à generalidade dos países europeus o usufruto de uma confortável paz social, económica e política, quadro mais bem aproveitado por uns do que por outros. 
 No concreto ano de 1963, o da entrada do Curso “Miguel Corte Real” na Escola Naval, registaram-se acontecimentos que, no futuro, iriam afectar significativamente o percurso de Portugal, enquanto nação pluricontinental e multicultural: é criada a OUA (Organização da Unidade Africana), desde logo pondo a tónica no ataque à realidade do estatuto das nossas então Províncias Ultramarinas; neste mesmo ano, aliás, inicia-se a luta armada contra os interesses portugueses na Guiné e em Cabo Verde, aumentando os problemas do antecedente já existentes em Angola. É, hoje, claro, que esta dinâmica nacionalista teve a “bênção” e o incentivo de quem na época, residente em ambas as margens do mar de Atlas, mandava no Mundo e que terá decidido ser chegado o momento de a consideração de certas “regras” da Economia, da Estratégia e da “gestão” dos recursos naturais do Continente Moreno conhecerem outro paradigma
 Também no plano internacional ocorreu o assassinato do Presidente dos Estados Unidos - John F. Kennedy, a eleição de um novo Papa, Paulo VI (que, quatro anos mais tarde, visitaria Fátima, num quadro de actuação de claro apoio aos movimentos anti - portugueses) e, já no fim do ano, a independência do Quénia, descolando do Império Britânico, enquanto a Etiópia, uns meses antes, cortava relações diplomáticas com Portugal. Ainda por esses tempos, Fidel Castro passava períodos alargados na URSS, certamente a beber os princípios democráticos ali reconhecidamente praticados, conseguindo, com pleno sucesso e que dura até ao presente, a sua aplicação no Estado monárquico que consolidou, para desespero de alguns ingratos cubanos, na bela ilha do mar das Caraíbas.
 Por cá, dirigentes do Partido Comunista eram presos (mera rotina, à época); no 1º de Maio, poucos dias após o grande incêndio que destruiu quase completamente a Fragata “D. Fernando II e Glória”, ocorriam incidentes em Lisboa, com um morto. Também se organizaram, no Verão, manifestações populares e das Forças Armadas, de apoio ao Presidente do Conselho, tendo as cerimónias militares do dia 10 de Junho, o Dia de Portugal, tido como palco, pela primeira vez, o Terreiro do Paço.
 E, para completar o cenário, o panorama desportivo de então: no futebol, ganhava o clube do regime; em hóquei, Portugal era campeão da Europa e, no ciclismo, o vencedor da Volta, João Roque, defendia as cores de uma agremiação que, ainda hoje, pedala, pedala, mas vê as metas cada vez mais distantes…A norte, o Clube que teria que esperar quase um quarto de século pelo seu Messias, via inaugurar a Ponte da Arrábida, a maior do mundo em arco de betão armado e cuja travessia, para disputar jogos a sul, fez durante décadas tremer gerações de representantes do Dragão.
 É, pois, neste enquadramento que, na 2ª feira, 2 de Setembro, pouco mais de seis dezenas de mancebos (resultantes de uma escolha que, em anos não muito distantes, era muito mais apurada e selectiva) se fazem à rampa que na Base Naval liga o Largo do Palácio à Escola Naval, onde são mandados formar, ainda à paisana, para identificação e recolha das primeiras instruções. O ambiente, algo intimidatório (como era suposto ser, numa escola militar), convidava os neófitos a grande reserva nas atitudes e nas palavras, para o que a presença do Oficial de Dia, de aspecto militarão e marcial, frente à formatura, muito contribuía.
 Feita a chamada, individual, a que os visados iam respondendo com a voz o mais firme possível, verificou-se que um de nós não constava na lista; com ar de poucos amigos, o Oficial pediu-lhe o documento da identificação da recruta, onde concluiu que o moço (muito enfiado, objecto de todos os olhares), em vez de se ter apresentado em Vila Franca, tinha ido ali parar…
 Esta cena teve o condão de ainda mais constranger os futuros CR’s, pelo que quando lhes foi pedido para que quem não fosse católico, o dissesse, o silêncio foi total, tendo assim o Rebanho do Senhor, de repente, sido aumentado com todas aquelas ovelhas, algumas das quais cedo vieram a tresmalhar… 
 Finalmente, o Curso “Miguel Corte Real” começava o seu percurso na Marinha: para a maior parte, até ao fim de 1966 na Escola e, depois, cumprindo décadas de serviço que honrou a Marinha e, de uma forma geral, encheu de orgulho e de sentido de realização pessoal todos os que, até ao fim dos seus tempos, serão CR’s pela escolha que o destino lhes proporcionou.
Manique, Dezembro de 2016
CR 11

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