domingo, julho 02, 2017

A Hora da Solidariedade

Uma equipa de luxo tinha-se reunido. Marte, habituado ao sangue das guerras, conhecedor de mil e uma estratégias de morte, ocupou-se da ordem de operações, não sem alguma hesitação, dado que, havia não muito tempo, tinha simpatizado com aquele povo. Vulcano, fabricante de raios e coriscos de qualidade, hoje certificados, era capaz de visar com precisão qualquer alvo com erro inferior a 100 centímetros, beneficiando da ajuda de pequeno equipamento que guardava religiosamente numa bolsa atada à cintura, o que era bem mais preciso do que o método antigo de jogar os raios à mão. Éolo, capaz de transformar qualquer atmosfera, por mais calma, simpática ou agradável, em assustador remoinho ventoso por vezes mesmo não respeitando as normas decretadas por Júpiter para o vento.

Escolheram as bandas de Pedrógão Grande, junto ao Zêzere, um local em que o arvoredo se debruça sobre as estradas, a mata é densa, a orografia espinhosa. Marte insistiu em data anterior ao início do que os humanos chamam época dos incêndios e que fôsse num sábado, quando as gentes descansam, visitam familiares ou se divertem, procurando esquecer agruras e preocupações. Vulcano impôs um dia em que o calor apertasse bem acima dos 30 Celsius e o risco de incêndio classificado de muito elevado, e Éolo favorecia um vento sem rajadas ou alterações de direcção bruscas.

Marte sabia que a estrutura de protecção civil, que os orgulhosos humanos tinham montado, estava vulnerável, e conhecia o local exacto das antenas em que confiavam para trocar impressões, combinar estratégias, tácticas e informações diversas, e também que as  instalações móveis de substituição estavam fora de serviço. Vulcano não ignorava que eles, os humanos, se ufanavam de ser capazes de prever o caminho do fogo, o que o deixava um pouco irritado, já que o fogo é indomável e, de acordo com Éolo, também insatisfeito com a ousadia da tentativa de saber de onde sopram os ventos, combinou uma forma de os confundir.

Decidiram em conjunto, assessorados por Baco, que seria 14 horas e 30 minutos após o início dos 17 dias do mês de Junho. Ordem de operações feita, foi devidamente distribuída, cifrada de forma a que não caísse em mãos alheias.

Mas Mefistófeles, na impossibilidade de considerar a aquisição, por ver o seu orçamento truncado por cativações, tinha alugado a alma de um semi-deus  agastado por só lhe ser permitido acesso a tarefas de olímpica jardinagem, lhe ser imposta a semana de 45 horas e não ser aumentado há mais de 1000 sóis. Foi nessas tarefas que lançou mão do importante documento, e, tendo tido manhas de o decifrar, embora parcialmente, conforme o contrato de aluguer, enviou-o a Mefistófeles.

Mefistófeles reconheceu imediatamente o potencial dos conteúdos que recebeu, aumentou o grau de prontidão das suas hostes e mobilizou uma equipa de intervenção rápida mefistofélica, embora a um sábado, o que lhe custaria uma fortuna em horas extra. O medo de ter de assumir a responsabilidade de não aproveitar tal oportunidade, perante a opinião infernal, era porém superior a qualquer explicação de gastos.

Não sabendo bem onde era essa coisa de Pedrógão, partiu cedo, não fôsse perder tempo a procurar a zona, e, chegando um pouco antes das duas da tarde, ordenou um reconhecimento, que revelou estar tudo pacífico. Refugiou-se, com a equipa de intervenção rápida mefistofélica, num pinhal perto de um lugar de que nunca tinha ouvido falar, Escalos Fundeiros. Sentado numa pedra, temia ter sido enganado e pensava nos castigos a aplicar ao informador; rapou de uma beata que acendeu estalando os dedos, para ajudar a passar o tempo, e pôs-se a brincar com a caruma existente no chão, que imediatamente se incendiou com o contacto daqueles dedos de fogo. Os membros da sua equipa de intervenção rápida mefistofélica, ao verem pequenas labaredas a bailar entre os dedos do patrão, avessos por natureza a qualquer disciplina ou contenção, ou talvez tentando interpretar as suas verdadeiras intenções, rapidamente juntaram grande quantidade de galhos partidos, caruma, pinhas. O fogo cresceu e um pinheiro próximo começou a arder. Furioso, Mefistófeles ergueu-se a voar e à volta do pinheiro voou três vezes a chiar de fúria, pois bem sabia que o fumo os denunciaria. Passou-lhe, muito brevemente, pela cabeça abafar as chamas, mas essa tarefa era impossível para aquela equipa e, de resto, para ele próprio, já que nenhum tinha formação de bombeiro. E, pior, o seu esvoaçar impensado tinha provocado o alastrar do fogo para árvores próximas. O fumo elevou-se, as chamas cresceram, o alarme estava dado.

Marte chegou ao local e logo se apercebeu do fogo para os lados de Escalos Fundeiros. Praguejou. Vulcano, aquele incapaz, fazia sempre asneira. Nem acertou no local nem na hora! Agora tinha de reajustar o plano! Tentou contactar Vulcano para o confrontar, usando o olimpomóvel, mas não tinha rede. Outro desvio da ordem de operações? Nisto, começou a ouvir os trovões consequência dos lançamentos de Vulcano.

Vulcano cumpria assim a sua parte na ordem de operações e durante 90 minutos espalhou as suas armas. Tinha preparado 300 raios, mas tinha tido 10% de falhas de fogo e só conseguiu colocar no solo cerca de 15% dos lançamentos, e mesmo assim longe dos alvos previstos, perdendo-se os outros no ar. Consequência de ter feito, afinal, os lançamentos à antiga, já que o seu equipamento também não tinha rede e assim faltaram-lhe boas posições de GPS. Mas o resultado parecia ser de uma eficácia sem par.

Mefistófeles deu-se imediatamente conta da presença de Vulcano, e a sua fúria converteu-se logo em alegria. Ordenou à equipa de intervenção rápida mefistofélica que espalhasse o fogo tanto quanto possível e ele próprio corria de labareda em labareda, transportando em ambas as mãos enormes ramos em fogo, espalhando ao acaso chamas e brasas por restolho e matas. Vulcano, ignorante da presença de Mefistófeles, surpreendia-se com o que julgava ser sua obra.

Éolo entrou em acção exactamente como estava na ordem de operações. Contra a expectativa dos humanos, um vento disciplinado, talvez previsível, presenteou-os com uma violenta sopradela de cima para baixo, baralhando completamente a normalidade, espalhando brasas em todas as direcções: o fogo espalhou-se sem rei nem roque, surpreendendo mesmo o próprio Mefistófeles, que compreendeu finalmente a totalidade do documento que recebera. Abandonou a tarefa de espalhar o fogo, agora desnecessária pela acção de Éolo, e ordenou à equipa de intervenção rápida mefistofélica a eliminação das antenas que os humanos usavam para comunicar entre si. Uma vez isso concluído, dedicou-se à recolha de almas inocentes, uma das suas tarefas preferidas.

Os humanos, esses, sofreram tudo. Tiveram medo, fugiram, sacrificaram-se, morreram, desesperaram, pediram ajuda, perderam casas, gado, haveres, tudo. Finalmente, após dias de combate, venceram o fogo. Contam-se 67 mortos, mais de 250 feridos, milhões de prejuízos, 45000 hectares ardidos, mais de 200 habitações destruídas, um sem número de vidas destroçadas, mas estes números não reflectem com rigor o estrago feito, apenas é uma forma deformada de o avaliar: de facto, é muito maior.

Agora é, de acordo com a comunicação social, a hora das respostas: quem teve culpa? Quem tem responsabilidades? Como foi possível? É a hora dos inquéritos, comissões, relatórios, avaliações. É a hora das explicações, jogadas como se de um xadrez gigantesco se tratasse, em que os receios de ficar mal na fotografia assumem estatuto como se tivessem direito próprio, é a hora de pensar nas eleições, é a hora de sacudir a água do capote, é a hora de apontar defeitos alheios, é a hora de caiar a fachada, é a hora de afiançar que culpas, se as há, se espalham num caldo de entropia máxima que talvez venha mesmo a abranger D. Diniz, e o Pinhal de Leiria.

Deixemos que se discuta tudo, mas não esqueçamos que agora é, também, a Hora da Solidariedade, a hora de ajudar como cada um puder os que viveram o inferno e sofrem. A hora de os respeitar e ajudar a reconstruir o que for possível das suas vidas. A hora de lhes mostrar que não estão sós. Sem condições de qualquer natureza.

É a hora de olhar para o 'como será'. É a hora de perguntar:

O que pode, cada um de nós, fazer por esse futuro?

4 comentários:

Cardoso Anaia disse...

Brilhante, gostei camarada, forte abraço.

JPVillas-Boas disse...

Gostei francamente.
Teremos também uma quota de culpa por já não construirmos fragatas de madeira?

Fernando Santos Lourenço disse...

O texto tem a qualidade HCR, está tudo dito.
Esse texto termina com a referência à "hora da solidariedade".
Se alguém do Curso, mais vocacionado para estes temas sociais, entender promover uma acção CR de apoio àquela gente (€), eu estarei nessa.

Saldanha Carreira disse...

Excelente texto só ao alcance de um grande "Penico". Adorei!
Quanto à sugestão de auxiliarmos, de tamanha desgraça, as pobres vítimas e suas famílias, declaro desde já a minha concordância.
Abraços para todos.
CR7