À minha espera, estava o dr. Silva e
Costa10 que, após as boas vindas, me levou para o Hotel Embaixador,
estrutura, à época, com qualidade e bem inserida no todo harmonioso que era a
cidade da Beira. Pelo caminho, informou-me que iria ser recebido pelo eng.º
Jardim ao fim do dia, como aconteceu, pelo que deu para, durante o fim de
semana e aproveitando um tempo magnífico, visitar a bela e airosa cidade e
desfrutar de locais que só em África, naquela nossa África de então,
existiam11.
Acabei então por ser recebido cerca
das 23 horas, nos escritórios da Lusalite na Beira, pelo engº Jardim;
apareceu com ar desportivo, de ténis, fresco como se estivesse a começar o dia.
Muito afável, fez-me algumas perguntas de carácter pessoal (uma das primeiras,
certamente por acaso, foi para saber o meu estado civil…) e de imediato passou
à explicação da razão da minha ida ao Malawi: diferentemente do constante na
mensagem inicial, o objectivo, afinal, seria o de “apreciar e sugerir
algumas modificações, em caso justificado, no respeitante às normas de
segurança a aplicar na futura Base Naval do Malawi, a construir próximo de
Nkhata Bay”12.
Após me ter informado da justificação “legal” para esta deslocação – iria,
na qualidade de engenheiro electrotécnico, tratar de assuntos junto da
“National Oil Company”13
-, o engº Jardim indicou-me que, ao contrário do que a mensagem referia,
ele não me acompanharia nesta deslocação, terminando o encontro com votos de
sucesso na missão.
Na manhã de 2ª feira, após deixar
todos os meus documentos e outros elementos comprometedores (nomeadamente, a
chapa de identificação militar usada pelos fuzileiros no Ultramar) ao cuidado
do Comando da Defesa Marítima, recebi, através do dr. Silva e Costa (que me
recolheu no hotel e me levou ao aeroporto), um salvo-conduto passado pela
D.G.S.14.Mr. Zimba conduziu-me, então ao “Shire Highlands Hotel”19, uma
unidade hoteleira afastada do centro da cidade (ao que me explicou, por razões
de discrição). Almoçou comigo e, à noite, levou-me ao “Mount Soche Hotel”, onde me apresentou o seu chefe, mr. NTaba, com
quem jantámos.
Fiquei, então, a
conhecer o interesse real dos malawianos na minha pessoa: não, o de “aconselhar
a segurança de aquartelamento de fuzileiros a construir”, conforme mensagem
recebida em Metangula; igualmente, não, o de “intervir na definição das normas
de segurança da futura Base Naval”, mas sim o de “actuar como expert,
tanto na construção e equipamento da Base Naval, como na escolha do local,
entre duas hipóteses pré-definidas, adequado para a sua implantação”. Nada de
mais, convenhamos, para quem não tinha qualquer histórico nessa matéria e
apenas ia, razoavelmente, preparado para ajudar na definição das regras e
condições de segurança da tal futura Base Naval, supostamente já definida e
localizada, tema que, aliás, os meus interlocutores não quiseram nem abordar,
por razões que em breve vim a perceber.
Cumpridos os
procedimentos de embarque e após ultrapassar um episódio ocorrido na
passagem pela alfândega, em que o agente policial de serviço terá achado
estranho o facto de eu apenas possuir salvo-conduto, não apresentando
passaporte ou B.I. (o que obrigou a uma última intervenção do dr. Silva e
Costa, forçado a explicar a situação ao agente), embarquei num avião
fretado para esta viagem (evitando assim usar a carreira regular). O aparelho,
enorme para esta necessidade (com capacidade para cerca de 24 passageiros)
levava a bordo apenas 2 pessoas – eu e o piloto – pelo que lhe fiz companhia no cockpit, tendo a
viagem para Blantyre15 decorrido com uma conversa de “surdos”, em
que o piloto, desconfiado, me questionava sobre quais os problemas que eu,
enquanto “engenheiro electrotécnico”, ia resolver na “Oil Company”, ao que eu retorquia com comentários
ao belo tempo que, naquele dia, se fazia sentir…
À minha espera, à chegada, estava o
Comendador Pombeiro de Sousa, Cônsul de Portugal em Lilongwe16, acompanhado
de um malawiano, mr. Zimba, “Oficial de Ligação” dos “Malawi Young Pioneers” (M.Y.P.)17.
Após as apresentações, Pombeiro de
Sousa deixou-me um contacto para qualquer eventualidade (apesar de o ter
tentado, tal nunca foi possível, certamente por razões de agenda do Cônsul…),
informou-me que a minha presença não era, nem podia vir a ser, do conhecimento
do nosso Embaixador18 e retirou-se para ir jogar golfe.
10 Amadeu da Silva e
Costa, de formação em Veterinária e pai de um Oficial da Armada, exercia, em
Moçambique, a sua profissão em empresas do sector da pesca, ao mesmo tempo que
se constituía como o “braço direito” do eng.º Jorge Jardim em múltiplas
das suas actividades, designadamente as ligadas às relações entre Moçambique e
o Malawi, de que era também Vice-Cônsul Honorário na Beira.
11 A Beira, capital
da Província de Sofala, originariamente designada de Chiveve, assumiu o
estatuto de cidade em 1907 e, à época deste episódio, era um dos destinos de
férias preferenciais dos rodesianos, pelas praias da orla marítima que se
estendia desde o Grande Hotel (inaugurado em 1955, anunciado como o “orgulho da
África” e considerado como o maior e mais requintado hotel do Continente
Africano, palco de grandes festas e recepções, como a do casamento, no fim dos
anos 60, de uma filha do engº Jorge Jardim com um jovem e muito qualificado
Oficial da Armada), até ao farol do Macuti. Dispunha de um porto bem equipado,
com ligações à Rodésia e ao Malawi, tendo outras atracções turísticas, como por
exemplo a sua Catedral e a Estação Ferroviária, construída nos anos 60 do
século passado. Usufruía, igualmente, da proximidade ao magnífico Parque da
Gorongosa, a cerca de 170 km a NW.
12 Capital do
distrito com o mesmo nome, no norte do país.
13 Companhia Petrolífera do Malawi,
com sede na capital, Lilongwe e onde a influência portuguesa era eficaz, embora
muito discreta, atenta a realidade geo-política daquela zona de África o engº
Jardim indicou-me que, ao contrário do que a mensagem referia, ele não me
acompanharia nesta deslocação, terminando o encontro com votos de sucesso na
missão.
14 Direcção Geral de Segurança,
delegação da Beira.
15 A 2ª cidade do
Malawi, já então considerada a “capital” financeira e comercial do país, por
contraponto à capital Lilongwe.
16 Pombeiro de Sousa,
um português radicado no Malawi desde 1946, elemento fundamental para, em
articulação com Jorge Jardim, efectuar o condicionamento, a favor dos
interesses de Portugal, da política daquele país.
17 Braço paramilitar
do Partido do Congresso do Malawi, do dr. Hastings Kamuzu Banda, inicialmente
criado como programa do Serviço Nacional da Juventude e respectiva agenda de
desenvolvimento. Ao longo do tempo, esse foco foi esquecido e a
organização, treinada para o efeito por Orlando Cristina, um operacional que
integrou o universo Jorge Jardim a partir de 1965, tornou-se numa
intrincada rede de espionagem e terror, constituindo-se como factor decisivo na
criação de um regime de partido único no país, funcionando simultaneamente como
Corpo de Guarda Pessoal do Presidente Banda.
18 Vasco Futscher Pereira, que depois
de 1974 integrou, como MNE, o VIII Governo Constitucional e com quem Jorge
Jardim não tinha uma relação aberta.