Já aqui tínhamos referido a colaboração do nosso camarada FSLourenço nos Anais do CMN do 1º Semestre de 2018. Aproveitando a difusão do mesmo artigo feito por outro camarada CR, o ACRDuarte, achámos que seria de interesse a sua divulgação pelos membros do Curso, especialmente pelos que por razões várias deixaram de ser ou não chegaram a ser sócios daquele Clube.
(Santos Lourenço, CDU 323.272ABRIL74, Anais
do Clube Militar Naval, Vol. CXLVIII, janeiro-junho 2018)
PO, Que futuro? História – Guerra colonial: MEMÓRIAS E VIDA -
A BASE NAVAL.
O filme – projectado no campo de jogos
do Comando da Defesa Marítima dos Portos do Lago Niassa (CDMPLN) –, suave,
romântico, aproximava-se do fim, embalando a assistência – militares e,
principalmente, familiares –num deleite prenunciador do fim feliz comum à
maioria das fitas mais sonantes da década de sessenta do século passado.
A temperatura, quente mas confortável,
naquela cálida noite de 21 de Abril de 1972, igualmente contribuía para que, na
Base Naval de Metangula1, integrada no CDM2 e instalada
num pedaço do paraíso banhado pelo Lago Niassa (que outros chamavam de
“Lago Malawi”), as pessoas antegozassem mais um fim de semana de descanso, com
razoável garantia de que nenhuma perturbação alteraria este quadro, como tinha
acontecido nos meses anteriores e continuaria nos seguintes.
Os meus afazeres, nessa semana a
findar, estavam, pensava eu, terminados: a minha Companhia de Fuzileiros não
tinha pessoal em operação no exterior, garantindo apenas a segurança das
instalações do CDMPLN; o Serviço de Vigilância e Polícia, de que, por
inerência, eu era igualmente Chefe, cumpria as medidas do nível de segurança em
vigor; o Estado-Maior, onde tinha uma função, só reabriria na 2ª feira seguinte
e o Centro de Comunicações, que também chefiava por ser da “arte”, mantinha a
operacionalidade H24 com a marca de qualidade técnica e profissional que a
Marinha, por esses anos, soube imprimir às Comunicações Navais3, o
que fez com que este Ramo tivesse liderado e sido a base da operacionalidade
das Comunicações Militares em várias décadas do século passado.
É então que, discretamente, o Comunicativo
de serviço se aproxima e me sussurra que tinha chegado uma mensagem,
Urgente, pedindo-me que o acompanhasse para efectuar o respectivo
processamento; intrigado, nem acompanhei o fim (já conhecido, de outras soirées…)
do filme e dirigi-me ao Centro de Comunicações.
A mensagem, enviada pelo Comando Naval
de Moçambique Avançado4, determinava, então, que o Comandante da
Defesa Marítima “deverá fazer seguir” para a Beira, no avião da DETA5
que partia de Vila Cabral (actual Lichinga) no dia seguinte, “um oficial, de
posto, pelo menos, primeiro-tenente, possivelmente o Comandante da Companhia nº
10 de Fuzileiros”– a minha, única naquele sector operacional. O mesmo
documento definia que o oficial escolhido “deverá seguir para o
Malawi em missão referida verbalmente ao Comandante da Defesa Marítima em
Nampula”, esclarecendo que essa missão “consiste deslocar-se norte
Malawi”, acompanhado do “Comandante Sousa, de quem receberá instruções
a fim de aconselhar na segurança ao Aquartelamento de Fuzileiros Navais a
construir aquele local”; a mensagem finalizava com a informação de que o “Comandante
Sousa fornecerá passaporte, devendo seguir trajo civil”.
Ganha a coragem suficiente,
dado o adiantado da hora, para informar o Comandante da Defesa Marítima6,
lá fui comunicar-lhe a ordem recebida; tal como referido na mensagem, já era
conhecedor do assunto, pelo que confirmou a minha deslocação e me passou
informação detalhada, da qual constava um facto inesperado e, para mim, muito
surpreendente: o “Comandante Sousa”, que me receberia na Beira, era nem
mais nem menos que o engº Jorge Jardim7…
Mal refeito das novidades daquele
fim de dia, fui para casa8. Preparei uma pequena mala com o
indispensável para uma missão ainda muito pouco definida, contei à mulher uma história
“meio redonda” para justificar a deslocação e no dia seguinte, cedo,
embarquei no CESSNA9 com destino a Vila Cabral, onde apanhei o voo
DETA para a Beira.
1 Nome tradicional da
localidade, oficialmente alterado em 1963 para “Augusto Cardoso”, em homenagem
ao Cap. Frag. Augusto de Melo Pinto Cardoso (1859-1930), administrador colonial
e explorador, ainda no séc. XIX, em zonas de África praticamente desconhecidas;
o actual Hotel Cardoso, em Maputo, construído em terrenos que pertenceram
àquele ilustre Marinheiro, dele recebeu o nome,
2 Nesta data, o CDM
dispunha de instalações de assinalável qualidade e adequadas ao cumprimento da
missão atribuída: um Edifício do Comando e da Capitania onde, para além dos
Serviços, estavam instalados o Centro de Comunicações, Estação Rádio-Naval e
Enfermaria; dois Blocos, no total de 10 moradias, dois Aquartelamentos, com
refeitório, cozinha e câmaras frigoríficas; Torre de vigia e Depósito da água,
com Farol instalado no topo; Central eléctrica com 3 geradores; Depósito para
material; duas Garagens; Iluminação pública; Vedação exterior, em arame farpado
e, junto à baía, a Casa das máquinas das bombas de água, o Serviço de
Assistência Oficinal (carpintaria e serralharia) e um plano inclinado, na
praia, junto à Ponte-cais das Lanchas. Dispunha ainda de uma pista para aviões
até DC-7, de um campo de jogos e de uma piscina, para além de outras estruturas
de menor dimensão.
3 Obra de um grupo de
militares, de extraordinária capacidade, competência, conhecimento e visão, no
qual pontificou, de entre outros, o VALM Pedro Moreira Rato, muito justamente
homenageado pela Marinha, que em 6 de Dezembro de 2017 atribuiu postumamente o
seu nome ao actual Centro de Comunicações, de Dados e de Cifra da Marinha.
4 Estrutura criada no
fim dos anos 60, em Nampula, visando concentrar nesta cidade do nordeste
moçambicano, mais próxima das zonas de conflito, os Comandos Operacionais dos 3
Ramos, facilitando e agilizando assim a gestão da guerra.
5 Divisão de
Exploração dos Transportes Aéreos dos Caminhos de Ferro de Moçambique, criada
nos anos 50. Já na década de 70, pouco antes da independência, mudou a
designação para DETA-Linhas Aéreas de Moçambique, de que resultou a actual
designação: LAM.
6 Cap.m.g. Joaquim
Gormicho Boavida, pessoa circunspecta, não muito comunicativa mas um militar
competente, rigoroso e defensor de uma disciplina marinheira – mais
participada que imposta – e que deixou saudades logo após a sua saída.
7 Jorge Pereira
Jardim, nascido em Novembro de 1919, à data exercendo as funções de Cônsul
Honorário do Malawi na Beira, engenheiro agrónomo de formação, na realidade,
diplomata, político, guerreiro, agente secreto e empresário; no dizer de
Pedro Vieira, um homem que “superou a pequenez do regime do Estado Novo com
acções que desafiam a imaginação humana, fazendo a sério o que James Bond faz
nos filmes…”. Podemos afirmar que, se as suas ideias tivessem sido avocadas pelo
poder de Lisboa, parte substancial da África Austral teria hoje outros matizes.
8 Os militares com
família em Metangula habitavam no exterior da Base, em casas maioritariamente
construídas, no espaço a caminho da pista de aviação, por um português da
metrópole ali radicado, o Neves.
9 O CDMPLN dispunha, à época, de 2
meios aéreos, quais “sucessores” dos primórdios da nossa Aviação Naval: 1
monomotor CESSNA 182/E, matrícula CR-A3T, de asa baixa, 4 lugares e 1 monomotor
DORNIER DO 27, pilotados, à época, por um oficial dos QP´s, o 1º ten. Marques
Pinto e por um oficial RN, o 2º ten. Rodrigues. Por razões de natureza legal,
os aparelhos pertenciam ao “Aeroclube de Metangula”, estrutura que só existia
para este efeito. Durante a maior parte do ano de 1972, o DO 27 esteve
deslocado na Beira, em manutenção.
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