quarta-feira, outubro 17, 2018

CR's em actividade: FSLourenço nos Anais do CMN (2 de 5)

À minha espera, estava o dr. Silva e Costa10 que, após as boas vindas, me levou para o Hotel Embaixador, estrutura, à época, com qualidade e bem inserida no todo harmonioso que era a cidade da Beira. Pelo caminho, informou-me que iria ser recebido pelo eng.º Jardim ao fim do dia, como aconteceu, pelo que deu para, durante o fim de semana e aproveitando um tempo magnífico, visitar a bela e airosa cidade e desfrutar de locais que só em África, naquela nossa África de então, existiam11.
Acabei então por ser recebido cerca das 23 horas, nos escritórios da Lusalite na Beira, pelo engº Jardim; apareceu com ar desportivo, de ténis, fresco como se estivesse a começar o dia. Muito afável, fez-me algumas perguntas de carácter pessoal (uma das primeiras, certamente por acaso, foi para saber o meu estado civil…) e de imediato passou à explicação da razão da minha ida ao Malawi: diferentemente do constante na mensagem inicial, o objectivo, afinal, seria o de “apreciar e sugerir algumas modificações, em caso justificado, no respeitante às normas de segurança a aplicar na futura Base Naval do Malawi, a construir próximo de Nkhata Bay”12. Após me ter informado da justificação “legal” para esta deslocação – iria, na qualidade de engenheiro electrotécnico, tratar de assuntos junto da “National Oil Company”13 -, o engº Jardim indicou-me que, ao contrário do que a mensagem referia, ele não me acompanharia nesta deslocação, terminando o encontro com votos de sucesso na missão.

Na manhã de 2ª feira, após deixar todos os meus documentos e outros elementos comprometedores (nomeadamente, a chapa de identificação militar usada pelos fuzileiros no Ultramar) ao cuidado do Comando da Defesa Marítima, recebi, através do dr. Silva e Costa (que me recolheu no hotel e me levou ao aeroporto), um salvo-conduto passado pela D.G.S.14.Mr. Zimba conduziu-me, então ao “Shire Highlands Hotel19, uma unidade hoteleira afastada do centro da cidade (ao que me explicou, por razões de discrição). Almoçou comigo e, à noite, levou-me ao “Mount Soche Hotel”, onde me apresentou o seu chefe, mr. NTaba, com quem jantámos.

Fiquei, então, a conhecer o interesse real dos malawianos na minha pessoa: não, o de “aconselhar a segurança de aquartelamento de fuzileiros a construir”, conforme mensagem recebida em Metangula; igualmente, não, o de “intervir na definição das normas de segurança da futura Base Naval”, mas sim o de “actuar como expert, tanto na construção e equipamento da Base Naval, como na escolha do local, entre duas hipóteses pré-definidas, adequado para a sua implantação”. Nada de mais, convenhamos, para quem não tinha qualquer histórico nessa matéria e apenas ia, razoavelmente, preparado para ajudar na definição das regras e condições de segurança da tal futura Base Naval, supostamente já definida e localizada, tema que, aliás, os meus interlocutores não quiseram nem abordar, por razões que em breve vim a perceber.

Cumpridos os procedimentos de embarque e após ultrapassar um episódio ocorrido na passagem pela alfândega, em que o agente policial de serviço terá achado estranho o facto de eu apenas possuir salvo-conduto, não apresentando passaporte ou B.I. (o que obrigou a uma última intervenção do dr. Silva e Costa, forçado a explicar a situação ao agente), embarquei num avião fretado para esta viagem (evitando assim usar a carreira regular). O aparelho, enorme para esta necessidade (com capacidade para cerca de 24 passageiros) levava a bordo apenas 2 pessoas – eu e o piloto – pelo que lhe fiz companhia no cockpit, tendo a viagem para Blantyre15 decorrido com uma conversa de “surdos”, em que o piloto, desconfiado, me questionava sobre quais os problemas que eu, enquanto “engenheiro electrotécnico”, ia resolver na “Oil Company”, ao que eu retorquia com comentários ao belo tempo que, naquele dia, se fazia sentir…
À minha espera, à chegada, estava o Comendador Pombeiro de Sousa, Cônsul de Portugal em Lilongwe16, acompanhado de um malawiano, mr. Zimba, “Oficial de Ligação” dos “Malawi Young Pioneers” (M.Y.P.)17.
Após as apresentações, Pombeiro de Sousa deixou-me um contacto para qualquer eventualidade (apesar de o ter tentado, tal nunca foi possível, certamente por razões de agenda do Cônsul…), informou-me que a minha presença não era, nem podia vir a ser, do conhecimento do nosso Embaixador18 e retirou-se para ir jogar golfe.


10 Amadeu da Silva e Costa, de formação em Veterinária e pai de um Oficial da Armada, exercia, em Moçambique, a sua profissão em empresas do sector da pesca, ao mesmo tempo que se constituía como o “braço direito” do eng.º Jorge Jardim em múltiplas das suas actividades, designadamente as ligadas às relações entre Moçambique e o Malawi, de que era também Vice-Cônsul Honorário na Beira.

11 A Beira, capital da Província de Sofala, originariamente designada de Chiveve, assumiu o estatuto de cidade em 1907 e, à época deste episódio, era um dos destinos de férias preferenciais dos rodesianos, pelas praias da orla marítima que se estendia desde o Grande Hotel (inaugurado em 1955, anunciado como o “orgulho da África” e considerado como o maior e mais requintado hotel do Continente Africano, palco de grandes festas e recepções, como a do casamento, no fim dos anos 60, de uma filha do engº Jorge Jardim com um jovem e muito qualificado Oficial da Armada), até ao farol do Macuti. Dispunha de um porto bem equipado, com ligações à Rodésia e ao Malawi, tendo outras atracções turísticas, como por exemplo a sua Catedral e a Estação Ferroviária, construída nos anos 60 do século passado. Usufruía, igualmente, da proximidade ao magnífico Parque da Gorongosa, a cerca de 170 km a NW.
12 Capital do distrito com o mesmo nome, no norte do país.
13 Companhia Petrolífera do Malawi, com sede na capital, Lilongwe e onde a influência portuguesa era eficaz, embora muito discreta, atenta a realidade geo-política daquela zona de África o engº Jardim indicou-me que, ao contrário do que a mensagem referia, ele não me acompanharia nesta deslocação, terminando o encontro com votos de sucesso na missão.
14 Direcção Geral de Segurança, delegação da Beira.
15 A 2ª cidade do Malawi, já então considerada a “capital” financeira e comercial do país, por contraponto à capital Lilongwe.

16 Pombeiro de Sousa, um português radicado no Malawi desde 1946, elemento fundamental para, em articulação com Jorge Jardim, efectuar o condicionamento, a favor dos interesses de Portugal, da política daquele país.

17 Braço paramilitar do Partido do Congresso do Malawi, do dr. Hastings Kamuzu Banda, inicialmente criado como programa do Serviço Nacional da Juventude e respectiva agenda de desenvolvimento. Ao longo do tempo, esse foco foi esquecido e a organização, treinada para o efeito por Orlando Cristina, um operacional que integrou o universo Jorge Jardim a partir de 1965, tornou-se numa intrincada rede de espionagem e terror, constituindo-se como factor decisivo na criação de um regime de partido único no país, funcionando simultaneamente como Corpo de Guarda Pessoal do Presidente Banda.
18 Vasco Futscher Pereira, que depois de 1974 integrou, como MNE, o VIII Governo Constitucional e com quem Jorge Jardim não tinha uma relação aberta.

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