sábado, outubro 06, 2018

Memórias dumas férias escolares do CR em 1964


Corria o Verão de 1964 e um pequeno grupo de cadetes do nosso CR , quatro ou cinco, planeava uma ida de férias ao Algarve. Um ou dois tinham Matemáticas Gerais para 2ª época pelo que o tempo disponível para aquelas pequenas férias conjuntas era reduzido. Definido o destino final, Quarteira, iniciou-se o planeamento com ênfase na logística. Sem tendas, alguém sugeriu que se levantassem na escotaria uns panos de tenda e uns ferros de fixação, processo que sabíamos possível e estar autorizado. Panos que, por serem utilizados no chão para limpeza das armas, tinham algumas manchas de óleo que já não saíam. Escolheram-se os melhores, dois por cabeça. Na reunião preparatória definiram-se alguns encargos, quem levaria um fogareiro a petróleo, alguns alimentos entre os quais sopas Knorr e conservas, um fato completo e gravata para o caso de se ir ao Casino. Definidos os horários de partida (de noite) e o percurso, de Lisboa via fluvial até ao Barreiro e de comboio até Loulé, onde então teríamos que avaliar o horário do transporte em camioneta até Quarteira. Chegados a esse primeiro destino de madrugada, tudo ainda fechado, só cerca de 3 horas depois foi possível dar início a essa parte do percurso, já com o tempo mais quente, parando diversas vezes no caminho para embarque de mais passageiros. Já em Quarteira e ansiando por um banho de mar, tivemos primeiramente que escolher o local da montagem das duas tendas, lado a lado, em plena praia porque na altura não havia impedimento. Concluída a montagem e colocados dentro os objectos transportados, sempre de gatas porque a altura da tenda não permitia outra solução, confrontámo-nos com outras tendas ao lado, recém-chegadas, novíssimas e de cores fortes, predominando o azul e laranja, no interior das quais se podia circular de pé, com cadeira de braços e outros confortos de que muito sentimos a falta nos dias seguintes.
Feito esse arranjo inicial ansiava-se pelo primeiro banho de mar, que para quem vinha habituado às praias do Norte foi uma verdadeira desilusão. Um autêntico caldo que não refrescava, sem qualquer onda! Para este grupo jovem, a alimentação não era assunto despiciendo e para a primeira refeição, em resultado dum percurso exploratório na zona, descobrimos uma pequena tasca a preços compatíveis com o ordenado de cadete, de duzentos e noventa e nove escudos ilíquidos, já deduzido um escudo de imposto de selo. Sopa e um prato do dia com direito a um copo de vinho de Lagoa, por cerca de seis escudos. Não era opção que pudesse ter continuidade e outras havia que procurar, até para dar uso ao fogareiro, a petróleo, previsto na fase de planeamento.
Descoberta uma ribeira duas centenas de metros adiante com sinais evidentes de vida, preparámos os apetrechos de pesca à linha, tendo, após algumas horas de esforço e sob um Sol abrasador, obtido o excelente resultado dumas dez enguias. Havia então que proceder à preparação do jantar ainda com a luz do dia e conseguiu-se um voluntário para a preparação da ementa decidida, enguias fritas com arroz. Foi a primeira e única vez que o fogareiro a petróleo trabalhou tal era o cheiro desse combustível que ali permaneceu uns dias, também na mala que levava o fato completo (que não chegou por falta de oportunidade a ser utilizado). O improvisado “Chef” - nomenclatura que então ainda não estava muito difundida -, utilizando um pacote de margarina de um quilo que se havia comprado, usou meia embalagem para fritar as enguias e a outra metade para cozinhar o arroz. Começámos por comer as enguias mas perante o aspecto do arroz, completamente amarelo e empapado, deixámos o cozinheiro, que tinha andado no Colégio Militar, defrontar-se com esse “petisco”, decidindo rumar à tal tasca, onde, apesar do custo, tivemos uma refeição decente.
Eliminado o fogareiro das nossas actividades mas não o cheiro a petróleo que ali permaneceu os restantes dias, optámos por uma solução que nos parecia económica e eficaz, de utilizar como combustível imensa madeira que havia espalhada pela praia. Tudo acções já não permitidas nos dias de hoje e actualmente apenas autorizadas se requeridas e fundamentadas. Cavado na areia um buraco largo e pegado fogo que demorou algum tempo a acender dada a humidade concentrada na madeira, começou a desenvolver-se tal fumo que mais parecia uma cortina de nevoeiro e, dada a direcção do vento, envolveu rapidamente os banhistas que se encontravam na água quase deixando de se verem. Rapidamente tivemos que pôr fim a tal iluminada ideia, afastando-nos do local como se nada tivéssemos a ver com o assunto.
Depois de mais uma ou duas noites mal dormidas e mais desconfortáveis do que a imaginação de dormir na areia fazia prever, para além da entrada e saída da “tenda” de gatas, o grupo desmantelou-se. Quem do pequeno grupo tinha segunda época e logo nas Matemáticas Gerais - que foram responsáveis pela passagem de vários elementos ao HC – terminou logo ali as mini-férias. Os que ali permaneceram, ao que soubemos, não chegaram a ir ao tal Casino nem a qualquer das festas que se tinham imaginado, mas ainda usufruíram de mais uns dias até ao início das aulas do 2º ano nos princípios de Setembro.

JPVB

2 comentários:

Fernando Santos Lourenço disse...

Excelente descrição.
Mas atendendo a que se tratou de uma deslocação de um grupo de CR's, em terras de José José Camarinha (não o trato por Zé Zé porque não tenho confiança com ele), acho que fica a faltar referência à parte, digamos, social, que certamente alguns cumpriram com denodo, dilatando assim, tal como o Patrono, a Fé e o Império naquelas sarracénicas paragens.

JPVillas-Boas disse...

Estava na moda no Algarve, fruto da "liberdade" que por esses países já reinava (anos sessenta), França e Inglaterra nomeadamente, o encantamento que entre a rapaziada portuguesa gerava a presença dessas turistas. Dois dos nossos companheiros dessa excursão, tendo avistado duas "piquenas" logo resolveram puxar do seu conhecimento linguístico para meter conversa, se bem que outros do grupo ficassem com sérias dúvidas sobre as origens das mesmas e os tivessem alertado. Puxando do seu conhecimento de línguas e uma postura adequada ao momento, iniciaram a abordagem, mas nenhuma delas dominava outra língua senão a de Quarteira!
Não havia então telemóveis para fotografar o desapontamento dos nossos camaradas.