quarta-feira, maio 26, 2021

A DOCA DA MARINHA

(ou “A Doca do Campo das Cebolas”?)

(“Ensaio” com o mote Doca da Marinha)

 F.S.Lourenço

Todos nós temos, certamente, episódios passados e imagens impressivas que, ao longo dos anos, nos marcaram de forma relevante e que, recorrentemente, afloram à superfície do oceano dos nossos pensamentos, servindo muitas vezes como escape da pressão dos problemas das nossas vidas.

Essas memórias marcantes do passado são de vários tipos: sentimentais e afectivas, resultantes das relações com outras pessoas, nas diversas fases da nossa existência; profissionais, decorrentes das experiências vividas ao longo da carreira; e outras, de caracterização mais difusa, muitas vezes um misto das anteriores, ou resultantes de episódios relevantes por que passámos.

Das primeiras, não será talvez tempo de falar; a maioria não prescreveu, pelo que o mais avisado é deixá-las no porão da amarra da nossa cloud memorial.
Vamos, então, às restantes: e assim, quase sempre no início dos meus dias (umas vezes, mais de madrugada, outras, não tanto), uma série de imagens e factos emerge no consciente, num desejo assumido de formatar o dia, que se segue, nas melhores condições para o enfrentar.

E quais são essas imagens e esses factos? Quando recorro ao arquivo “Marinha”, felizmente não tenho qualquer dificuldade em preencher o “programa” desse dia; a Marinha deu-me praticamente tudo o que eu juntei neste meu percurso, já algo avançado: foram os seus princípios, que eu avoquei; os traços de carácter, que aperfeiçoei; o relacionamento social, o conhecimento de novos mundos, o orgulho do botão de âncora, o objectivo de uma vida. 

E então, lá se perfilam cenas na Escola Naval, imagens da Base Naval de Lisboa (a dos anos 60/70 do século passado, cheia de navios nas pontes-cais, com centenas de pessoas, para cá e para lá, infelizmente a antítese da actual, já há muitos anos correspondendo à imagem que um antigo ministro, num pós-almoço de verão e a propósito da localização de um aeroporto, usou para caracterizar as terras lusas a sul do Tejo); e também me ocorre o “S. Gabriel”, na Venezuela e em Cabo Ruivo; a “Sacadura Cabral”, em França; a minha Companhia de Fuzileiros, em Moçambique; a “Roberto Ivens”, na “difícil” Angola de 1975 e o Hospital da Marinha, que desde a primeira hora frequentei e ao qual me mantive ligado até ao seu fim, lamentável pela forma e pelas razões. E o QNG (Quadro dos Navios de Guerra), onde passei muitas noites amarrado à bóia, invejoso dos movimentos nocturnos na cidade…

E a Doca da Marinha.

A Doca da Marinha foi o primeiro local, do então meu futuro, que conheci. No ano anterior à Marinha me acolher, trabalhei no Ministério das Finanças, num departamento com janela a dar para a Doca; via o movimento, o aprumo do pessoal fardado. Fui assim, estribado numa assumida relação de topofilia, alimentando a esperança e reforçando o desejo que vim a concretizar. Ali embarquei numa vedeta (VP9?) para ir a uma Escola que me esperava, que me impunha um respeito muito grande e que poderia vir a ser, como foi, a porta de entrada de um mundo totalmente desconhecido. Curiosamente, comecei bem cedo a perceber o que significava esta Doca para a Marinha; por lá, passaram, durante muitas dezenas de anos, milhares (dezenas de milhares…) de marinheiros, de manhã, num sentido, de tarde, no outro. E foram também esses homens que davam, e deram, vida àquela Base Naval que acima evoquei.

E era da Doca da Marinha que, em ocasiões importantes, muitas vezes os navios partiam. Para África, para as Ilhas, para o Mundo; em 1965, a “Sagres”, com o nosso Curso “Miguel Corte Real” embarcado, de lá partiu para cumprimento de uma etapa decisiva na nossa formação. Com a Banda da Armada, com os nossos familiares. Num espaço nosso, da Marinha. (A mesma “Sagres”, certamente carregada de vergonha, largou a 5 de Janeiro de 2020, do terminal de cruzeiros de Santa Apolónia, para uma das mais relevantes missões que lhe foram atribuídas na sua história).

E era também na Doca da Marinha que alguns navios de Marinhas estrangeiras eram recebidos. Era uma casa da Marinha.

Um dia, alguém foi pragmático. De quem é isto, que agora está a ser menos usado? Da Marinha? Sai já. Precisam de manter o transporte dos (poucos) militares que ainda têm? Passam para um canto da Praça do Campo das Cebolas. Há ali um corredor estreito entre a Estação dos barcos do Barreiro e aquela que era a Doca deles, usem-no.

E nós, reclamámos? De certeza. Esperneámos? De certeza também. Mas seriam assuntos de natureza militar reservada, não pudemos ter conhecimento disso.

Constatamos assim que a Doca da Marinha cumpriu sempre o seu desiderato: Honrou a Pátria. Lamentavelmente, Esta não a contemplou; ao invés, ignorou-a, descartou-a, cremou-a, com as cinzas a irem para a vala comum. E tudo em nome do bem-estar da sociedade, aquele que tem tradução nas eleições definidas pelo regime.

Há no entanto que reconhecer uma certa coerência nesta decisão. A Doca da Marinha foi empurrada para um canto do Campo das Cebolas; a Marinha já foi, há muito, empurrada para um canto deste País. Basta olhar para os meios disponíveis (há quem diga que temos uma fragata operacional…); ou para os recursos humanos de que dispõe; ou, talvez, para os orçamentos de operação e manutenção.

E, por imperativo de coerência, falta agora finalizar a “obra”, identificando o espaço outrora ocupado pela Doca da Marinha com a placa toponímica correcta: Doca do Campo das Cebolas. Assim, sim, um trabalho com assinatura.

Enfim, uma Marinha preocupantemente a caminho do zero, não hidrográfico.

E, aqui, já não se trata de uma questão de coerência, mas sim de um faz-de-conta que sobrevive há muitas dezenas de anos e para cujo fim avanço uma singela sugestão, mais à frente.

Como é de todos nós sabido, as sucessivas gerações que nos governaram após 1974 (melhor dizendo: que fizeram parte desses governos) sempre afirmaram juras de amor eterno e garantias de paixão assolapada pelo mar, o nosso mar, enquanto olhavam, uns mais de soslaio, outros à descarada, para Bruxelas e Estrasburgo, ambas as cidades ligeiramente afastadas da orla marítima, fora, claramente, da linha de maior preia-mar do mar Europeu. E por esta razão métrica compreendo que nunca tivesse sido possível, a esses senhores, construírem uma visão estratégica do País assente no mar - um bem que outros consideram vital para todas as vertentes que enformam uma sociedade: entre outras, económica, política, estratégica – de afirmação no cômputo das nações.

E já que as coisas são assim, e parece que é para ficarem tal e qual, avanço então (pro bono) com uma sugestão que permitirá eliminar aquele “irritante” que acompanha os políticos (nem todos, faça-se justiça), deixando-os dormir o sono dos justos nas suas deslocações ao centro da Europa: faça-se um aterro, daqui até à costa americana!

Esta lúcida iniciativa permitirá, desde logo, fazer desaparecer o objecto do incómodo; tem ainda as vantagens acrescidas de acabar com as ultraperiferias das nossas ilhas, beneficiando em muito o orçamento geral do Estado e permitindo que alguns dos nossos irmãos ilhéus possam passar a deslocar-se, por terra, ao eldorado americano com que sempre sonharam. Como plano B, deixaria ficar o mar a sul, para permitir as férias dos governantes e o usufruto pelos ingleses; sempre ajuda o PIB.

E o Bojador? Esse, ficaria no Algarve, garantindo em pleno a nossa presença naval. Por mim, acrescentaria a esta emergente entidade oceânica a tal fragata que ainda está operacional; e nem é complicado: saíam os azuis, entravam os verdes, de bota de cano alto; retirava-se “A Pátria Honrae que a Pátria vos Contempla”, substituída “Pela Lei e Pela Grei”. E o nosso Tenente-Coronel substituía o Capitão-de-Fragata. Feito.

Seguir-se-ia a constituição de uma Task Group, a ser robustecida com os meios que parece que vão continuar a vir. Finalmente, o Reabastecedor de que a Marinha, em tempos recuados, disse que precisava, mas é claro que, neste cenário, já não faz falta nenhuma, seria aumentado ao efectivo do novo actor, permitindo-lhe assim assumir em pleno a continuação do cumprimento da tarefa começada há 700 anos pelo Almirante Manuel Pessanha, que consta terá pertencido à Marinha.

2 comentários:

Carlos V. Carrasco disse...

Meu Caro Fernando
Li com muito agrado e saudade este teu artigo.
Parabéns e um forte abraço!
Carlos VC

Ferreira de Carvalho disse...

O estado da Marinha em precisa e concisa linguagem.
Magnífico texto!
FC (CR32)