segunda-feira, maio 03, 2021

O Cross na Mata

 F.S.Lourenço

 

O ano de 64 corria prazenteiramente no universo dos mancebos, agora cadetes, do Curso Miguel Corte Real (CR). Era o ano da descoberta da percepção e experimentação de uma nova realidade, certamente ambicionada pela esmagadora maioria dos CR’s.

Esse ano, de uma década fantástica na evolução do mundo, via a música, anglo-saxónica, francófona e de além-mar, atingir patamares de qualidade e solidez que a fazem perdurar pelos tempos, até ao presente e com garantia de percorrer o futuro.

O Presidente da República, Almirante Américo Thomaz, visitava Moçambique, a “pérola” do Índico, depois de ter inaugurado uma linha de montagem de camiões na Metalúrgica Duarte Ferreira (havia metalúrgicas, havia Sorefame, havia Siderurgia Nacional; havia…).

Outro Presidente, o Marechal Craveiro Lopes, falecia, não acumulando o desgosto de ver quase desaparecer o Teatro Nacional de D. Maria II num violento incêndio de que só recuperou mais de 10 anos depois.

E a Marinha percebia que já estaria a correr a melhor década de sempre da sua brilhante existência, fase com certeza irrepetível nos tempos vindouros.

E o CR a dar os primeiros passos nessa Marinha; se não era a perfeição das condições, não se consegue imaginar outro cenário mais favorável.

Na Escola Naval, era dia de Educação Física. Programa: cross na mata, adjacente ao campo de futebol.

À ordem do Instrutor, o grupo arrancava num galope que, à data, só de pensar, aniquilava alguns CR’s. E entre estes havia um (não era o único…) que só não se safava dos pincéis se não pudesse; andava o mais possível na “cocha”, gozando com os “pobres” que cumpriam todas as “sevícias” daquele tempo. (Pena, na altura, a Escola não ter criado o Prémio de Cochice, ia haver acesa disputa para o conquistar).

Iniciado o cross, o “protagonista” desta história, estrategicamente colocado na cauda do pelotão, aproveitava a primeira curva do percurso para se “apear”, escondendo-se atrás do arvoredo conivente; confortavelmente sentado, ripava do maço de cigarros e do isqueiro e usufruía de um período lectivo “suplementar” de descanso; e quando calculava que a aula tinha terminado e o Instrutor se tinha retirado, calmamente descia do campo para o ginásio, tomava o banho e reassumia a normalidade do dia.

E foi assim, muitas vezes.

Um dia, talvez porque as músicas que entretanto ouvira (num transístor, vendido pelo Zé Narso, nessa altura ainda com “miolo”), durante esse “descanso”, o tivessem distraído (era a Sylvie Vartan, era o Tom Jones, era o Frank Sinatra, eram muitos outros), o nosso CR resolveu, lá de cima, junto ao campo, perguntar a um dos que saíam do ginásio (a uns metros largos de distância): “Oh F…, o Martin já saiu?”

O “perguntador” ouve, então, a cerca de 2 metros de si, a resposta:

“Estou aqui, sr. Cadete, quer falar comigo?”

Passada aquela fase em que o uso de fralda teria dado muito jeito, o nosso herói começou logo a pensar no que iria dizer ao Comandante da Companhia, o saudoso Abel. Mas só saíram “desculpas de grumete”, que não aqueceram nem arrefeceram.

E nos 2 fins de semana que se seguiram, o transístor não teve descanso; safou-se a música e o rancho melhorado.

E as interrupções dos crosses tiveram assim um fim prematuro.

 


Este texto é dedicado, com admiração, respeito e afecto, ao Comandante José Martins e Silva, num singelo preito de homenagem, pelo Homem que foi e pelo Marinheiro que mostrou ser.

1 comentário:

Unknown disse...

Comungo da tua homenagem a tão extraordinário ser Humano e competente Oficial de Marinha.
Abraço
Caldeira Santos