domingo, dezembro 25, 2022

Não se enganou!

Repito, não se enganou. Apesar do aspecto ser diferente, este é o blogue do Curso Corte Real, apenas com um novo cabeçalho. Porquê?

Tudo muda e evolui, "Todo o mundo é composto de mudança", porque não o nosso cabeçalho? Nascida a ideia, com a decisiva contribuição do Bonina Moreno, a quem devemos a concepção e execução, está concretizada, estando o CR a caminho de comemorar os 60 anos de admissão na Escola Naval, onde teve o seu nascimento.

Se digitalizássemos as mudanças do mundo e as pudéssemos ver representadas a cores e a tempo real, possivelmente obteríamos uma visão efervescente muito colorida, em permanente alteração, zonas onde a cor seria mais estável, outras em que a variação apareceria mais irrequieta, talvez fôssemos capazes de reconhecer alterações de comportamento influenciando a vizinhança e provocando autênticas tempestades de mudança ou outros casos em que a irrequietude seria amortecida até renascer de novo, continuando um eterno e variado baile. Nunca encontraríamos nessa visão a ausência de movimento, nem dois momentos idênticos em toda a sequência, escapar-nos-ia a visão de estabilidade ou a ideia de futuro desejável. Como um mar em que a ondulação nunca se repete, apesar das percepções de similitude que possamos construir.

Que "potestade, ameaço divino ou segredo" alimentará tal permanente e imprevisível instabilidade, se não a diferença, como a da pressão leva ao vento, o de potencial leva ao raio, a da gravidade leva ao fluir da água? Uma permanente procura de novos estados, não necessariamente melhores ou mais estáveis, parece universal e mesmo compulsiva. E enquanto as coisas inanimadas seguem sempre os ditames das diferenças alheias, como uma pedra que rola só se empurrada por alguma força e só pára quando encontra outra, os seres vivos lutam em permanência durante o período em que estão vivos por alguma autonomia, gerando a força para se manterem no ar, voando, ou a habilidade para trepar o tronco de uma árvore procurando o alimento, o mais das vezes à custa de outros seres vivos, que lhes fornecerá a energia necessária nessa luta de vida ou morte. Energia essa que, também ela, procura avidamente a entropia máxima que consiga encontrar.

Eis a razão da mudança do cabeçalho: viver num mundo em constante mudança, na companhia, mesmo que ténue e remota, de com quem nos sentimos bem. Nele retivémos as palavras do fundador do blogue, Joaquim Francisco de Almada Paes de Villas-Boas, "Um ponto de encontro dos camaradas do Curso Miguel Corte Real, onde se procura reavivar o passado e partilhar o presente" porque ela representa a bóia a que estamos amarrados.

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança:
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança:
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem (se algum houve) as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto,
Que não se muda já como soía.

Luís Vaz de Camões

 

Um Ano Novo cheio de felicidade

segunda-feira, dezembro 19, 2022

Encontros do CR: Almoço em 9DEZ2022


Em 9 de Dezembro de 2022 teve lugar mais uma confraternização dos membros deste curso, desta feita no Clube House Golf, Herdade da Aroeira, associando o sempre grato convívio a um local tão aprazível como convidativo, à proximidade das festividades do Natal e à recepção de um novo ano. Estiveram presentes 17 camaradas, que com suas esposas totalizaram 30 convivas, tendo, infelizmente, diversos imprevistos impedido que as presenças tivessem sido mais numerosas.

Após a distribuição de um saboroso cozido à portuguesa, Vasconcelos da Cunha criou um momento de reflexão, em torno de 3 poesias de que referiu ter-se servido "para fazer o elogio e a necessidade de mantermos estes contactos regulares com que alimentamos a nossa amizade e espírito de grupo que, forjados num sonho comum e reforçados na sua vivência e recordações, nos guiam hoje a respirar o cheiro a alga da maresia e a procurar colher a estrela do mar nas cidades navio". Tomamos a liberdade de transcrevê-las

 

Marinheiro sem Mar
Sophia de Mello Breyner
Longe o marinheiro tem
Uma serena praia de mãos puras
Mas perdido caminha nas obscuras
Ruas da cidade sem piedade

Todas as cidades são navios
Carregados de cães uivando à lua
Carregados de anões e mortos frios
E ele vai baloiçando como um mastro
Aos seus ombros apoiam-se as esquinas
Vai sem aves nem ondas repentinas
Somente sombras nadam no seu rastro.
Nas confusas redes do seu pensamento
Prendem-se obscuras medusas
Morta cai a noite com o vento

E sobe por escadas escondidas
E vira por ruas sem nome
Pela própria escuridão conduzido
Com pupilas transparentes e de vidro

Vai nos contínuos corredores
Onde os polvos da sombra o estrangulam
E as luzes como peixes voadores
O alucinam.

Porque ele tem um navio mas sem mastros
Porque o mar secou
Porque o destino apagou
O seu nome dos astros

Porque o seu caminho foi perdido
O seu triunfo vendido
E ele tem as mãos pesadas de desastres

E é em vão que ele se ergue entre os sinais
Buscando a luz da madrugada pura
Chamando pelo vento que há nos cais

Nenhum mar lavará o nojo do seu rosto
As imagens são eternas e precisas
Em vão chamará pelo vento
Que a direito corre pelas praias lisas

Ele morrerá sem mar e sem navios
Sem rumo distante e sem mastros esguios
Morrerá entre paredes cinzentas
Pedaços de braços e restos de cabeças
Boiarão na penumbra das madrugadas lentas.

E ao Norte e ao Sul
E ao Leste e ao Poente
Os quatro cavalos do vento
Sacodem as suas crinas

E o espírito do mar pergunta:

 «Que é feito daquele
Para quem eu guardava um reino puro
De espaço e de vazio
De ondas brancas e fundas
E de verde frio?»

Ele não dormirá na areia lisa
Entre medusas, conchas e corais
Ele dormirá na podridão
E ao Norte e ao Sul
E ao Leste e ao Poente
Os quatro cavalos do vento
Exactos e transparentes
O esquecerão

Porque ele se perdeu do que era eterno
E separou o seu corpo da unidade
E se entregou ao tempo dividido
Das ruas sem piedade.

Os Amigos
Sophia de Mello Breyner

Voltar ali onde
A verde rebentação da vaga
A espuma o nevoeiro o horizonte a praia
Guardam intacta a impetuosa
Juventude antiga -
Mas como sem os amigos
Sem a partilha o abraço a comunhão
Respirar o cheiro a alga da maresia
E colher a estrela do mar em minha mão

 

Pus o meu sonho num navio
Cecília Meireles (poetisa brasileira)

Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.

 

Noutro momento, Silva da Fonseca lembrou que o curso completa em 2023 os 60 anos (60!...) da entrada para a Marinha, justificando-se alguma celebração da efeméride, e propondo a constituição de um grupo de camaradas para definirem como se poderá concretizar, o que foi aceite.

Participaram: Bonina Moreno e esposa, Caldeira dos Santos e esposa, Cardoso Anaia e esposa, Costa e Silva e esposa, Costa Roque e esposa, Freire de Menezes, Marques de Sá e esposa, Matias Cortes e esposa, Moreira Pereira, Pereira Bento e esposa, Possidónio Roberto e esposa, Rebelo Duarte e esposa, Rebelo Marques, Reynaud da Silva, Silva da Fonseca e esposa, Silva e Pinho e esposa e Vasconcelos da Cunha e esposa, que gentilmente permitiram que se registasse o momento na fotografia que acima reproduzimos.

Um bom Natal e que o Ano Novo se componha apenas de momentos felizes.


quinta-feira, dezembro 01, 2022

Aniversários de elementos do CR: Dezembro 2022

Durante Novembro, a crer na comunicação social, a população mundial ultrapassou os oito mil milhões de pessoas. É interessante comparar este número com a população existente em 1900, e 2000, contabilizadas respectivamente em 1,65 e 6,15 milhares de milhões. 

As previsões levam a pensar que os 9 milhares de milhões serão ultrapassados um pouco antes de chegado o ano 2040 e que antes do fim do século XXI serão ultrapassados os 10 milhares de milhões, mas o crescimento terá cessado. 

De facto, a taxa de crescimento da população mundial está em queda e chegará o fim de décadas de rápido crescimento. Se olharmos para o número de menores de 15 anos, verifica-se que, sendo em 1950 cerca de 0,87 milhares de milhões são hoje à volta de 2 mil milhões, mas a taxa de crescimento está próxima do zero, prevendo-se que se torne negativa. A mesma tendência podemos descortinar para os menores de 25 anos, cujo número hoje é de cerca de 3,25 milhares de milhões, mas que, talvez antes de 2050, tenderá a descer.

E em Portugal? Os menores de 15 anos apresentam uma taxa de crescimento negativa desde o início dos anos 80, o que também acontece com os menores de 25 anos, e continuarão a tendência, possivelmente com uma taxa menos negativa. Os anos futuros trarão uma diminuição do peso da juventude, e isso não exclusivamente em Portugal.

Na Europa a população já está em diminuição; nas Américas prevê-se que tal venha a acontecer um pouco depois de meados deste século, assim como na Ásia; a África é a única região em que a população continuará a crescer até ao fim do século. Por volta dos anos 50 deste século, prevê-se que cerca de 54,5% da população do mundo viva na região da Ásia (55,1% em 1950), 25,6% na da África (9,1% em 1950), 7,3% na da Europa  (22% em 1950), 7% na da América do Norte (8,7% em 1950), na da América do Sul 5,6% (4,5% em 1950) e na da Oceania 0,6% (0,5% em 1950.

Segundo o Our World in Data, que temos vindo a seguir, é um momento extraordinário na história global. A taxa de crescimento da população global atingiu um máximo há meio século, e o número de nascimentos está, por sua vez, a caminho de a atingir. No passado, com uma elevada mortalidade infantil, apenas 2 crianças por mulher atingiam a idade adulta, gerando uma elevada resistência ao crescimento, e, no futuro, essa resistência será devida à baixa fertilidade. Curiosamente, 2 filhos parecem vir a ser a norma, tal como no passado.

oOo

Em Novembro, a guerra na Ucrânia continuou o seu destrutivo percurso, mas felizmente, com a mediação diplomática da Turquia foi possível evitar a suspensão do acordo que tem permitido o escoamento de cereais ucranianos. As forças da Federação Russa retiraram da cidade de Kherson, cuja ocupação fora feita pouco tempo depois de ter sido desencadeada a invasão da Ucrânia. O movimento gerou boa quantidade de análises por parte de observadores e foi precedido de um pouco convincente filme noticioso onde são indicados os objectivos, entre outros preservar a prontidão para combate das unidades envolvidas, libertar algumas delas para empenho em outras zonas e diminuir o sofrimento da população. Quaisquer que tenham sido as razões, foi inegavelmente um momento vitorioso para a Ucrânia, mas que não interrompeu o ataque às infraestruturas ucranianas de produção e distribuição de energia.

A meados do mês dois mísseis de fabrico russo caíram no território da Polónia, causando a morte de duas pessoas, tendo provocado uma onda de preocupação por, numa primeira fase se ter admitido que seria um acto intencional por parte da Federação Russa, podendo levar ao envolvimento da NATO no conflito, o que não se veio a confirmar. Embora o míssil fosse de fabrico russo, o seu disparo foi da responsabilidade das forças ucranianas, durante acções de defesa anti-aérea, e tratou-se de um infeliz acidente.

oOo

Neste mês de Dezembro celebrarão o aniversário os seguintes membros deste curso, a quem enviamos um abraço de parabéns:

02DEZ (1943) Paulo Guilherme Marques Reynaud da Silva
03DEZ (1943) Gonçalo de Jesus Guerreiro Cordes Valente
04DEZ (1943) Alexandre Cabral de Noronha e Menezes
07DEZ (1944) Fernando Alberto dos Santos Lourenço
19DEZ (1943) Amadeu Cardoso Anaia
19DEZ (1944) Manuel Aníbal Coelho Rebelo Marques
25DEZ (1946) Henrique Alexandre Machado da Silva da Fonseca

Não podemos também deixar de lembrar, com saudade, o Rocha da Silva, nascido a 02DEZ1944. 

oOo

A não esquecer

O tradicional almoço de Natal do CR está previsto para o dia 9 de Dezembro.

terça-feira, novembro 01, 2022

Aniversários de elementos do CR: Novembro 2022

Em Outubro não foi visível qualquer sinal de abrandamento na guerra na Ucrânia, tendo-se mantido afastado qualquer vislumbre de resolução do conflito, quer militar quer diplomaticamente, e, pelo contrário, assiste-se ao seu enraizamento. A comunicação social refere insistentemente uma próxima iniciativa das forças ucranianas, no início de Outubro uma importante ponte que liga a Crimeia ao continente foi alvo de um ataque que provocou extensos danos e as forças russas, por sua vez,  visaram objectivos da infraestrutura ucraniana de produção e distribuição de energia, tendo provocado danos substanciais. No fim do mês, a Federação Russa deu como suspenso o acordo que tem vindo a permitir o trânsito de navios mercantes  para escoamento de cereais, alegando um ataque às unidades navais em Sebastopol que comprometeria a segurança da navegação.

Ao longo do mês também se foram tornando mais habituais referências ao emprego de  armamento nuclear, enquanto as rupturas em dois gasodutos que ligam a Rússia e a Alemanha permaneceram sem que tenha vindo a público qualquer explicação mais fundada do que acusações mútuas ou especulações de observadores.

A inflação foi outra das estrelas do mês, já que parece já rondar os 10% e apresentar uma particular vontade para, também, se expandir e crescer, motivando a reacção do Banco Central Europeu, que aumentou a taxa de juro, motivando interessante discussão e dúvidas em torno da justeza da medida. Considerando vários factores, nos quais o preço da energia se apresenta em lugar destacado, não faltam opiniões que asseguram ser de esperar novos aumentos para breve.

Na Escolar Naval terminou o Concurso de Admissão de Cadetes, tendo os resultados sido publicados em 4 de Outubro, revelando que todas as vagas previstas foram preenchidas (num total de 45), distribuídas pela Classe de Marinha (21), de Fuzileiros (3), de Administração Naval (4), de Engenheiros Navais, ramo de Mecânica (5) e ramo de Armas e Electrónica (8) e Médicos Navais, sendo a nota mais elevada 176,0 e a menor 117,3. Saudamos todos os admitidos, e desejamos que satisfaçam não só as suas expectativas individuais, mas principalmente as da Marinha.

Neste mês de Novembro lembramos os aniversários dos seguintes elementos do CR:

12NOV (1944) Jorge Augusto Pires
14NOV (1945) Arménio Carvalho Carlos Fidalgo
27NOV (1945) Álvaro Amado Bordalo Ventura

A todos um abraço de parabéns.

Lembramos igualmente o Correia Graça, falecido em 5Nov2010, o Ferreira Neto, falecido em 14Nov2014 e o Rodrigues Maurício, nascido em 29Nov1943 e falecido a 21Nov1994.

oOo

A não esquecer

O tradicional almoço de Natal do CR está previsto para o dia 9 de Dezembro, estando abertas as inscrições, que solicitamos sejam feitas até 2 de Dezembro.



sexta-feira, outubro 07, 2022

F.S.Lourenço

A Marinha em Moçambique

As praxes no Niassa

A Marinha de Guerra Portuguesa, o Ramo mais antigo das nossas multicentenárias Forças Armadas, sempre sustentou a sua imagem e desempenho num quadro de relacionamento social único, peculiar, inconfundível e universalista, assente no seu capital humano. Tal permitiu-lhe, como regra, optimizar os restantes vectores estruturais, de natureza material, financeira ou organizacional.

A Marinha que eu conheci foi assim, sendo mais evidente esta implícita hierarquia de valores em fases de grande crescimento na quantidade e qualidade de meios, como ocorreu na década de 60 do século passado com a aquisição de um avultado número de navios de superfície e de submarinos, a que correspondeu um significativo incremento nas suas capacidades tecnológica, científica e operacional. Como é sabido, esta situação repetiu-se em momentos posteriores, embora com características e dimensões diferentes.

Certamente que diversos factores concorreram, ao longo dos tempos, para que esta realidade – organização de cunho marcadamente cosmopolita e inerente savoir-faire - fosse a marca de água da Corporação: o secular convívio com outros povos e sociedades, a abertura a novas realidades com o conhecimento de novos horizontes e, mais contemporaneamente, a participação em Organizações Internacionais Militares, como a NATO, à qual aderimos desde a primeira hora, há mais de sete décadas, privando assim com sociedades das mais evoluídas do primeiro mundo, aprendendo muito mas igualmente afirmando os valores e características que nos identificam e referenciam.

E não será por acaso, mas garantidamente consequência da idiossincrasia do Ramo do botão de âncora, que existe em Portugal uma organização ilustre e prestigiada, a AORN (Associação de Oficiais da Reserva Naval), prosseguindo os mesmos valores e integrando um significativo número daqueles que durante quase 2 décadas, no cumprimento do seu serviço militar, escolheram a Marinha para ajudar, de forma brilhante, na gesta de África e continuando, ao longo dos tempos, a “defender a Marinha, Portugal e o Mar”, conforme rezam os seus Estatutos.

É neste contexto de dimensão social que introduzo o fenómeno das praxes, prática generalizada na instituição naval, desde o início da carreira do militar, passando por situações específicas frequentemente associadas a locais distantes da metrópole europeia.

A minha visão e, também, a minha experiência nesta área de relacionamento social impelem-me para, de forma inquestionável, assumir que em regra a existência e a prática das praxes com que convivi foram uma mais-valia para a Marinha, para os seus órgãos e, principalmente, para as pessoas, os militares envolvidos. Fê-los crescer, estruturar princípios, valorizar as relações pessoais, assumir comportamentos ajustados à profissão (como se sabe, muito baseada neste tipo de valores) e reconhecer linhas vermelhas a não ultrapassar.

Comigo, foi esta a realidade. E sei que muitos outros (naturalmente, da minha geração) comungam desta avaliação.

Claro que, desde sempre, se verificaram desvios à boa prática das praxes; mas, igualmente, existiam mecanismos de controlo e supervisão que, em tempo oportuno, os corrigiam ou eliminavam. A Escola Naval é um bom exemplo disso mesmo: o “Comodoro” da praxe, cadete do último ano, eleito pelos seus pares, intervinha de motu proprio, ou quando solicitado, em defesa dos sãos princípios daquela prática.

Não se pode também ignorar a imagem que as praxes têm, hoje, junto dos portugueses. Todos sabemos que tal juízo muito negativo resulta de cenas aberrantes, grosseiras, algumas roçando a obscenidade, visando objectivos de exibicionismo alarve, para alimento de certas redes ditas “sociais”, com que alunos de alguns estabelecimentos de ensino superior nos têm brindado ao longo dos últimos anos e a que os verdadeiros responsáveis vão reagindo com preocupante indiferença, não actuando por forma a acabar com essas poucas vergonhas no espaço público, antes as tolerando de forma cúmplice.

Fica, portanto, evidente que acabámos de falar de realidades totalmente diferentes.

Em Moçambique, a partir de meados dos anos 60 do século passado, a Marinha passou a dispôr de uma Base Naval em Metangula, na margem leste do lago Niassa, a cerca de 100 km da cidade de Vila Cabral (agora Lichinga), ponto terminal da célebre linha do “combóio do Catur”, via ferroviária que transportou de Nacala para o interior milhares de militares dos 3 ramos das Forças Armadas.

A Base de Metangula, criada na povoação de Augusto Cardoso, foi um importante instrumento de acção da Marinha na extensa área da parte portuguesa do Lago Niassa. Ocupando a península de Metangula, fronteira ao monte Tchifuli, gozava de enorme autonomia, dispunha de instalações magníficas e de todo o equipamento necessário, não esquecendo as necessidades de lazer das guarnições e famílias (estas, alojadas em habitações no exterior da Base), acolhendo várias centenas de militares e civis, em condições invejáveis, atendendo ao padrão geral das estruturas militares nacionais à data, em África. Tinha, como vectores de projecção, mais de uma dezena de meios navais, entre Lanchas de Fiscalização e Lanchas de Desembarque, Médias e Pequenas. E, tendo como “vizinhos” uma unidade do Exército (o comando do Batalhão de Caçadores atribuído àquela zona), disponibilizava-lhes o apoio logístico necessário, fornecendo a energia eléctrica às instalações.

É então com base nesta estrutura da Marinha que se esboça o que, durante os 2 primeiros anos da década de 70, foi o guião-tipo de “recepção” aos oficiais checas (ou maçaricos…) quando se apresentavam em rendição individual.

Normalmente, o visado chegava via aérea a Vila Cabral, vindo da Beira; de Metangula, saía um oficial, acompanhando o piloto num pequeno avião da Marinha, um monomotor Cessna 182 de 4 lugares (em termos formais, pertencente ao Aeroclube de Metangula…) para a adequada recepção do novo elemento.

Ao recém-chegado era sugerido que adquirisse, numa pastelaria da cidade, pastéis de nata para o jantar desse dia, na Messe. No aeroporto, seguia-se então o embarque no Cessna, que, após autorização, se dirigia ao limite da pista para iniciar a descolagem. Mas, antes, ainda com o avião imobilizado, o piloto ia fazendo perguntas comprometedoras ao oficial acompanhante, tipo “este botão, aqui no tablier, é para cima ou para baixo? E os flaps, como é que funcionam”?

A tudo isto, o pobre do visado assistia, no banco traseiro do avião, com crescente preocupação (entretanto, e ainda antes do embarque e aproveitando uma “suposta” distracção do piloto, já tinha sido informado pelo acompanhante que este era pouco hábil e quase estreante na função, tinha mesmo tido um pequeno acidente na semana anterior, mas “se Deus quiser, há-de tudo correr bem”).

Iniciada a descolagem, o piloto “comia” metade da pista, sem conseguir tirar o avião do chão; com alguns impropérios à mistura, lá o fazia subir um pouco, mas para logo de novo o deixar cair. E o pobre, cada vez mais nervoso…até que, quase no fim da (extensa) pista, o avião finalmente descolava e subia.

Iniciado o trânsito (curto, de cerca de meia hora), as vicissitudes não diminuíam; já no terço final da rota, o avião, ao ultrapassar a cordilheira de Maniamba (altitude aproximada de 1800 metros), voava próximo do topo das elevações, induzindo uma proximidade preocupante para os novatos; nessa altura, o piloto descontraidamente informava que, recentemente, ali tinha sido atacado, tendo escapado por pouco…e o recém-chegado afundava cada vez mais no banco traseiro, passando a ostentar um visual de tom amarelado.

Na preparação para a aterragem na pista de Metangula - esta, sim, curta (menos de 1000 metros), de terra batida, embora permitisse a operação de Dakotas, começava e terminava nas águas do Lago - o quadro agravava-se sobremaneira; já na aproximação, o piloto voltava a questionar o parceiro do lado sobre vários elementos técnicos, demonstrando grande desconhecimento sobre a execução da manobra. Como, naturalmente, o questionado não sabia responder, tal “obrigava” a um contacto de emergência (que só existia para o recém-chegado) com a torre de controlo, em que as perguntas mais “estranhas” eram feitas e as respostas passadas ao piloto, que actuava em conformidade.

Com a “vítima” já praticamente desfeita, ainda lhe era pedido que tivesse cuidado com a caixa dos pastéis de nata, não fosse cair com os solavancos e as manobras bruscas que estavam a ocorrer…algumas vezes, a reacção do “desgraçado”, em total desespero, era a de, com expressões aqui irreproduzíveis, informar que “queria lá saber” dos bolos…

Finalmente, após borregar duas ou três vezes, aumentado o nível já extremo de pânico do novo elemento, o avião lá pousava na pista.

Mas os problemas estavam ainda longe de terminar: infelizmente, o motor do Cessna parava antes de atingir o hangar, onde também estava a equipa de boas-vindas ao novo membro; então, como é que era possível chegar ao destino? A solução era simples: com o piloto dentro do avião, este era empurrado pelo recém-chegado até ao final (às vezes, cerca de cem metros…). Aí, para além do pessoal da sua nova Unidade, estava o “agente” da Pide/DGS...mas com funções alargadas, como a seguir se verá.

O Padre e o Agente
Este personagem, sempre de poucas falas e com semblante patibular, começava por lhe aplicar uma multa, por ter chegado depois da hora limite, que era sempre “definida” em conformidade (essa multa, à qual o pagante por vezes reagia, alegando que tal facto não era da sua responsabilidade – argumento liminarmente rejeitado -, revertia para o bar da Messe de Oficiais); em seguida, era feita uma rigorosa “inspecção” aos seus pertences, num tom ameaçador e provocatório, sendo-lhe apreendidos todos os livros, por suspeita de conterem propaganda subversiva e até o pó branco, para aplicação nos sapatos da farda, ficava retido por suspeita de poder ser droga… Entretanto, o “agente” informava-o, mantendo o ar ameaçador, que o material retido lhe seria devolvido no dia seguinte, caso não se confirmassem as suspeitas levantadas…

Iniciava-se, de seguida, a viagem (curta, cerca de 450 metros) para a Base. Mas, ainda antes da sua instalação, o recém-chegado era conduzido à enfermaria, com o objectivo de “tomar a vacina contra o paludismo” e efectuar um exame médico para “aquilatar” da sua disponibilidade física…


Aí era recebido pelo “enfermeiro”, cargo exemplarmente “desempenhado”, à época, por um Comandante de Lancha do Malawi, que envergava uma bata de aspecto abominável: sujíssima, com nódoas tipo sangue, rôta, a criar um quadro inenarrável.

O “profissional” de saúde começava por ministrar ao “paciente” a dita “vacina”, na dose de uma colher e que não era mais de que um conhecido laxante, que produziria os seus efeitos nas horas seguintes; depois, pedia-lhe para subir (e descer) de uma cadeira umas dezenas de vezes, medindo-lhe a tensão de forma muito pouco convincente…

Já meio esmagado por estes acontecimentos, era então conduzido ao alojamento.

Chegada a hora do jantar na Messe de Oficiais, na qual tinha também lugar o temido “agente” da Pide/DGS, eram-lhe passadas as instruções quanto ao cuidado a ter com esse indivíduo (situações houve em que o desafortunado, quando o via entrar na Messe e ainda indignado com as cenas ocorridas à saída do avião, pretendia reagir, do que era prontamente dissuadido, pelas “graves implicações” que daí poderiam ocorrer…

Antes de se iniciar a refeição, o “padre” iniciava uma reza, com fraseologia pouco convencional, à qual os comensais correspondiam com o ar mais convicto e crente deste mundo; o novo membro, muito baralhado, tentava integrar-se no grupo, acompanhando com dificuldade os rituais daquela “estranha” prática religiosa…

Depois do jantar, o cenário mantinha-se até ao fim do serão, com os novos camaradas a agradecer a gentileza dos bolos, mas sempre com o “agente” da Pide/DGS a visar o neófito com um ar desconfiado e hostil…

Quando se tratava de um novo Comandante de Lancha, o programa sofria uma “change”: após o fim da refeição e do convívio, o Comandante cessante e o novo dirigiam-se já noite fechada ao cais, embarcando na Lancha, porque era necessário cumprir uma missão que não tinha sido possível adiar; claro que essa missão tinha obviamente que ser agitada q.b.: ainda o navio não tinha saído da baía iniciava-se um “feroz” ataque a partir da margem, com fogo nutrido que rompia o escuro da noite, ecoava no Tchifuli e provocava a maior das confusões e “pânico” a bordo.

Depois de o Comandante “conseguir escapar” desta cilada sem baixas ou danos materiais, a Lancha regressava à Base, com o protagonista deste longo dia totalmente “impróprio para consumo”…

Terminada a jornada, era o momento para, finalmente, deixar o novo elemento recolher ao seu quarto para descansar e recuperar de tudo o que tinha vivido.

Nalguns casos e quando a chegada a Metangula ocorria mais próximo da hora do jantar, o programa era adaptado, eliminando-se algumas das cenas descritas e incluindo uma outra: para não atrasar a refeição, o recém-chegado, com a bagagem, era conduzido directamente à Messe; a meio do jantar, o Despenseiro aparecia, com ar compungido, a comunicar que tinha surgido uma situação inopinada e que não era possível disponibilizar, para aquela noite, instalações para o sr. Tenente…pelo que já tinha colocado uma cama no hall de uma das residências, junto à porta para o exterior, onde ele teria que passar a noite; e igualmente o alertava para o perigo decorrente de uma cobra (das mais venenosas, claro) que andava por ali e ainda não tinha sido apanhada…

E a primeira noite terminava mesmo assim…

Mas havia sempre o day after e, manhã cedo, tempo das formaturas para serviços, quando o mal refeito “novo membro” se dava conta de que o execrável “agente da Pide/DGS” estava agora, ou a comandar uma Unidade de Fuzileiros, ou um Serviço, ou, ainda a Esquadrilha de Lanchas, e que o padre, afinal, tinha subitamente perdido a vocação e assumido uma carreira militar laica, começava na sua cabeça a desconstrução da “realidade virtual” vivida no dia anterior e o início do conhecimento do mundo que o acolheria a partir de então.

E começava igualmente, para o visado, uma nova fase da sua vida militar, intensa, respaldada nos valores induzidos no início deste texto – o respeito por cada um, a sã camaradagem, o convívio social aberto, o “bom senso” naval – cujos efeitos, regra geral, perduraram nos tempos que se seguiram e cujas marcas ainda hoje são visíveis.