Uma equipa de luxo tinha-se reunido. Marte, habituado ao sangue das
guerras, conhecedor de mil e uma estratégias de morte, ocupou-se da
ordem de operações, não sem alguma hesitação, dado que, havia não muito
tempo, tinha simpatizado com aquele povo. Vulcano, fabricante de raios e
coriscos de qualidade, hoje certificados, era capaz de visar com
precisão qualquer alvo com erro inferior a 100 centímetros, beneficiando
da ajuda de pequeno equipamento que guardava religiosamente numa bolsa
atada à cintura, o que era bem mais preciso do que o método antigo de
jogar os raios à mão. Éolo, capaz de transformar qualquer atmosfera, por
mais calma, simpática ou agradável, em assustador remoinho ventoso por
vezes mesmo não respeitando as normas decretadas por Júpiter para o
vento.
Escolheram as bandas de Pedrógão Grande, junto ao Zêzere,
um local em que o arvoredo se debruça sobre as estradas, a mata é densa,
a orografia espinhosa. Marte insistiu em data anterior ao início do que
os humanos chamam época dos incêndios e que fôsse num sábado, quando as
gentes descansam, visitam familiares ou se divertem, procurando
esquecer agruras e preocupações. Vulcano impôs um dia em que o calor
apertasse bem acima dos 30 Celsius e o risco de incêndio classificado de
muito elevado, e Éolo favorecia um vento sem rajadas ou alterações de
direcção bruscas.
Marte sabia que a estrutura de protecção civil,
que os orgulhosos humanos tinham montado, estava vulnerável, e conhecia o
local exacto das antenas em que confiavam para trocar impressões,
combinar estratégias, tácticas e informações diversas, e também que as
instalações móveis de substituição estavam fora de serviço. Vulcano não
ignorava que eles, os humanos, se ufanavam de ser capazes de prever o
caminho do fogo, o que o deixava um pouco irritado, já que o fogo é
indomável e, de acordo com Éolo, também insatisfeito com a ousadia da
tentativa de saber de onde sopram os ventos, combinou uma forma de os
confundir.
Decidiram em conjunto, assessorados por Baco, que seria
14 horas e 30 minutos após o início dos 17 dias do mês de Junho. Ordem
de operações feita, foi devidamente distribuída, cifrada de forma a que
não caísse em mãos alheias.
Mas Mefistófeles, na impossibilidade
de considerar a aquisição, por ver o seu orçamento truncado por
cativações, tinha alugado a alma de um semi-deus agastado por só lhe
ser permitido acesso a tarefas de olímpica jardinagem, lhe ser imposta a
semana de 45 horas e não ser aumentado há mais de 1000 sóis. Foi nessas
tarefas que lançou mão do importante documento, e, tendo tido manhas de
o decifrar, embora parcialmente, conforme o contrato de aluguer,
enviou-o a Mefistófeles.
Mefistófeles reconheceu imediatamente o
potencial dos conteúdos que recebeu, aumentou o grau de prontidão das
suas hostes e mobilizou uma equipa de intervenção rápida mefistofélica,
embora a um sábado, o que lhe custaria uma fortuna em horas extra. O
medo de ter de assumir a responsabilidade de não aproveitar tal
oportunidade, perante a opinião infernal, era porém superior a qualquer
explicação de gastos.
Não sabendo bem onde era essa coisa de
Pedrógão, partiu cedo, não fôsse perder tempo a procurar a zona, e,
chegando um pouco antes das duas da tarde, ordenou um reconhecimento,
que revelou estar tudo pacífico. Refugiou-se, com a equipa de
intervenção rápida mefistofélica, num pinhal perto de um lugar de que
nunca tinha ouvido falar, Escalos Fundeiros. Sentado numa pedra, temia
ter sido enganado e pensava nos castigos a aplicar ao informador; rapou
de uma beata que acendeu estalando os dedos, para ajudar a passar o
tempo, e pôs-se a brincar com a caruma existente no chão, que
imediatamente se incendiou com o contacto daqueles dedos de fogo. Os
membros da sua equipa de intervenção rápida mefistofélica, ao verem
pequenas labaredas a bailar entre os dedos do patrão, avessos por
natureza a qualquer disciplina ou contenção, ou talvez tentando
interpretar as suas verdadeiras intenções, rapidamente juntaram grande
quantidade de galhos partidos, caruma, pinhas. O fogo cresceu e um
pinheiro próximo começou a arder. Furioso, Mefistófeles ergueu-se a voar
e à volta do pinheiro voou três vezes a chiar de fúria, pois bem sabia
que o fumo os denunciaria. Passou-lhe, muito brevemente, pela cabeça
abafar as chamas, mas essa tarefa era impossível para aquela equipa e,
de resto, para ele próprio, já que nenhum tinha formação de bombeiro. E,
pior, o seu esvoaçar impensado tinha provocado o alastrar do fogo para
árvores próximas. O fumo elevou-se, as chamas cresceram, o alarme estava
dado.
Marte chegou ao local e logo se apercebeu do fogo para os
lados de Escalos Fundeiros. Praguejou. Vulcano, aquele incapaz, fazia
sempre asneira. Nem acertou no local nem na hora! Agora tinha de
reajustar o plano! Tentou contactar Vulcano para o confrontar, usando o
olimpomóvel, mas não tinha rede. Outro desvio da ordem de operações?
Nisto, começou a ouvir os trovões consequência dos lançamentos de
Vulcano.
Vulcano cumpria assim a sua parte na ordem de operações e
durante 90 minutos espalhou as suas armas. Tinha preparado 300 raios,
mas tinha tido 10% de falhas de fogo e só conseguiu colocar no solo
cerca de 15% dos lançamentos, e mesmo assim longe dos alvos previstos,
perdendo-se os outros no ar. Consequência de ter feito, afinal, os
lançamentos à antiga, já que o seu equipamento também não tinha rede e
assim faltaram-lhe boas posições de GPS. Mas o resultado parecia ser de
uma eficácia sem par.
Mefistófeles deu-se imediatamente conta da
presença de Vulcano, e a sua fúria converteu-se logo em alegria. Ordenou
à equipa de intervenção rápida mefistofélica que espalhasse o fogo
tanto quanto possível e ele próprio corria de labareda em labareda,
transportando em ambas as mãos enormes ramos em fogo, espalhando ao
acaso chamas e brasas por restolho e matas. Vulcano, ignorante da
presença de Mefistófeles, surpreendia-se com o que julgava ser sua obra.
Éolo
entrou em acção exactamente como estava na ordem de operações. Contra a
expectativa dos humanos, um vento disciplinado, talvez previsível,
presenteou-os com uma violenta sopradela de cima para baixo, baralhando
completamente a normalidade, espalhando brasas em todas as direcções: o
fogo espalhou-se sem rei nem roque, surpreendendo mesmo o próprio
Mefistófeles, que compreendeu finalmente a totalidade do documento que
recebera. Abandonou a tarefa de espalhar o fogo, agora desnecessária
pela acção de Éolo, e ordenou à equipa de intervenção rápida
mefistofélica a eliminação das antenas que os humanos usavam para
comunicar entre si. Uma vez isso concluído, dedicou-se à recolha de
almas inocentes, uma das suas tarefas preferidas.
Os humanos,
esses, sofreram tudo. Tiveram medo, fugiram, sacrificaram-se, morreram,
desesperaram, pediram ajuda, perderam casas, gado, haveres, tudo.
Finalmente, após dias de combate, venceram o fogo. Contam-se 67 mortos,
mais de 250 feridos, milhões de prejuízos, 45000 hectares ardidos, mais
de 200 habitações destruídas, um sem número de vidas destroçadas, mas
estes números não reflectem com rigor o estrago feito, apenas é uma
forma deformada de o avaliar: de facto, é muito maior.
Agora é, de
acordo com a comunicação social, a hora das respostas: quem teve culpa?
Quem tem responsabilidades? Como foi possível? É a hora dos inquéritos,
comissões, relatórios, avaliações. É a hora das explicações, jogadas
como se de um xadrez gigantesco se tratasse, em que os receios de ficar
mal na fotografia assumem estatuto como se tivessem direito próprio, é a
hora de pensar nas eleições, é a hora de sacudir a água do capote, é a
hora de apontar defeitos alheios, é a hora de caiar a fachada, é a hora
de afiançar que culpas, se as há, se espalham num caldo de entropia
máxima que talvez venha mesmo a abranger D. Diniz, e o Pinhal de Leiria.
Deixemos
que se discuta tudo, mas não esqueçamos que agora é, também, a Hora da
Solidariedade, a hora de ajudar como cada um puder os que viveram o
inferno e sofrem. A hora de os respeitar e ajudar a reconstruir o que
for possível das suas vidas. A hora de lhes mostrar que não estão sós.
Sem condições de qualquer natureza.
É a hora de olhar para o 'como será'. É a hora de perguntar:
O que pode, cada um de nós, fazer por esse futuro?
4 comentários:
Brilhante, gostei camarada, forte abraço.
Gostei francamente.
Teremos também uma quota de culpa por já não construirmos fragatas de madeira?
O texto tem a qualidade HCR, está tudo dito.
Esse texto termina com a referência à "hora da solidariedade".
Se alguém do Curso, mais vocacionado para estes temas sociais, entender promover uma acção CR de apoio àquela gente (€), eu estarei nessa.
Excelente texto só ao alcance de um grande "Penico". Adorei!
Quanto à sugestão de auxiliarmos, de tamanha desgraça, as pobres vítimas e suas famílias, declaro desde já a minha concordância.
Abraços para todos.
CR7
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