SAUDADES DE UMA VIDA
Tenho
saudades de subir a pé do Largo do Palácio para aquele Edifício em que comecei
uma vida nova e da primeira formatura na Escola Naval ainda à paisana onde me assumi
católico à força e dos granéis nas camaratas onde a AGA Confraria Pró Granel da
Armada eu o Borinácio e o Bordalo tornávamos algumas noites diferentes também tenho saudades das escapadelas
para os navios assim fugia-se à praxe tenho saudades dela daquela e comprava-se
o tabaco as bebidas e a gama Old Spice e os sabonetes Lifebuoy tenho saudades
do gamanso da pasta isto se calhar não devia dizer mesmo tendo lerpado um fim
de semana em que o fêcêpê jogava no municipal de Oeiras não pude ver e tenho
saudades de apanhar pontos com operações que metiam estetoscópio isto se calhar
também não devia dizer tenho saudades de dar o salto à paisa e voltar pela mata
e ser apanhado pelos guardas e cães tenho saudades de comprar e mandar comprar
pastéis de nata com factura na Suíssa e das sessões de iscas nas vedetas das
que fui objecto não tenho muitas saudades só algumas e tenho saudades das
procissões da Senhora da Saúde consegui escapar a todas na Escola mas fui
apanhado mais tarde pelo nosso Abel deste tenho muitas saudades que me pôs a
desfilar na Rua da Palma e na Rua do Benformoso a mandar os meus fuzileiros
olharem pró infinito em vez de olharem prás assistentes
nas varandas tenho saudades de ir à
cantina comprar coisas ao Direitinho e engraxar os sapatos no Faustino que um de
nós soube relevar a sua memória e tenho saudades do Capelão Melo que emprestou
o carro a mim e ao Arménio Carlos não é o da CGTP para fazer exame de condução
que é claro não correu bem ainda por cima também lhe fiz a cama à espanhola
algumas vezes ele depois vingou-se e foi o padre do meu casamento mas já
passaram mais de 25 anos e como qualquer outro crime segundo a lei portuguesa
já prescreveu e também tenho saudades dos embarques de fim de semana porque
navegávamos e davam algum dinheirito mas não tenho muitas por causa do cheiro a
draga-minas e tenho saudades das aulas de Luta Militar se calhar não tínhamos
aquela vontade indómita que o Major
coitado queria mas paciência tenho saudades das aulas de inglês pelas minhas notas
convenci-me que tinha nascido para dominar a língua de Shakespeare afinal
constatei mais tarde que não era verdade tenho saudades de vestir apenas o
peitilho da camisa do 3B para a formatura tenho saudades do toque de alvorada
na altura não gostava mas a idade traz estas mudanças tenho saudades da leitura
da Ordem o Comandante determina e manda publicar está lida a Ordem e tenho
saudades dos crosses na mata que serviam para descansar debaixo da árvore e
para uma cigarrada às vezes corriam mal porque os movimentos do Martin eram imprevisíveis
ainda não havia GPS só havia LORAN e DECCA e eu não era bom em cinemáticos e
tenho principalmente saudades das personalidades do convívio dos Miguel Corte
Real que ainda hoje identifico na maioria e cuja companhia cada vez me provoca
mais satisfação e conforto e tenho ainda saudades de muitas outras coisas que
se calhar um dia destes quando me voltar o fôlego conto.
N. da R. : Texto da autoria do FSLourenço, mantido na côr azul por razões sobejamente conhecidas e desnecessáriamente explicáveis.
5 comentários:
Lourenço gostei bastante deste "corridinho" duma vida naval mas haverá quem não te vai perdoar o esquecimento: Os medronhos da mata do Alfeite (e os seus efeitos) nos "crosses".
Formidável, meu Compadre! Como calcularás, adorei...
Abraço apertado do amigo de sempre.
CE
E eu também. Saudades...
E saudades dos que, connosco, fizeram esta jornada, mas já não estão entre nós, das gargalhadas que trocámos, dos disparates que fizemos e dissemos, das zangas que tivemos, dos granéis que gerámos, das passas que apanhámos.
E saudades do convés (que não é de vidro), do rosnar das caldeiras em aquecimento, do tranquilizador resmungo dos motores a arrancar, do compassado funcionar dos bate-estacas, da teimosia dos vaporizadores, do zumbido das bombas e centrifugadores, da tranquilidade das turbinas e da passividade dos veios.
E saudades do cheiro a vapor e a gasóleo, das mãos sujas, do trapo e desperdício, das fugas e tubos rotos, das vibrações suspeitas, das temperaturas anómalas, da desconfiança em manómetros e termómetros, das contaminações de óleo, das análises à água das caldeiras.
E saudades das avarias (quem o diria), dos fabricos, descarbonizações e limpeza de caldeiras, da busca de sobressalentes, das reparações pela noite fora, dos sucessos e dos insucessos.
E saudades das máquinas prontas, dos suspiros do ar comprimido, do tilintar dos telégrafos, da volta à faina e até do malagueiro.
É… saudades… de tanta coisa!
Meus caros camaradas, com as vossas lembranças fizeram-me voar no espaço e recuar no tempo, revivendo o bom e o mau de uma rápida carreira naval. Que saudades...
Bem haja a todos.
Acho que o facto de, nesta fase das nossas vidas, falarmos de memórias, de saudades, é normal, é bom. A mim, conforta-me. E aguardo que mais exponham as suas saudades (com mais qualidade, como as do HCR, que muito apreciei-por isso é que ele é penico-ou como as minhas, a atirar pró granel).
E acho que todos os CR´s estão em condições de contribuir-ficamos a aguardar-, talvez com excepção do ASP que, tendo sempre levado uma vida de recolhimento e oração, poderá não ter saudades de nada.
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