quinta-feira, março 04, 2021

Quando a política e a estratégia se “deslaçam” ….


 

Conheci a notícia do novo meio operacional (navio-patrulha) da Unidade de Controlo Costeiro (UCC) da GNR, através dos discernidos comentários da autoria de estimados camaradas e amigos [1] e, passado algum tempo, gostaria de me juntar às suas vozes, elencando um conjunto de reparos, formulados na qualidade de cidadão deste país, que nos calhou ou onde nós encalhámos, na irónica expressão do Senhor Cardeal Patriarca, Dom Manuel Clemente.

Antes, seja-me permitido introduzir o tema recuperando três eixos de ordem político-estratégica, designadamente “desenvolvimento económico”, “mar” e “segurança e defesa”, procurando explaná-los numa perspectiva de desejável articulação entre Forças Armadas (FFAA) e de Segurança (FFS - GNR e PSP) e forçosamente em modo resumido, motivado pela minha humilde interpretação do que considero serem os “interesses nacionais”, mas, como todos, preocupado com o destino que vamos legar às gerações que nos sucederão.

Começando pela vertente económica e de desenvolvimento desta década, julgo útil frisar a estagnação económica por “pecados” de todos conhecidos e que nos têm feito cair no ranking europeu do rendimento per capita. Os desafios, para inverter a situação, acrescidos da recuperação da Covid-19 são gigantes e os recursos para lhes responder são escassos, pelo que nos espera um trabalho insano e, necessariamente, lúcido e clarividente.

Sobre o segundo eixo, o mar, serve para insistir na valorização do seu potencial de generoso trunfo e irrecusável activo do renascimento económico do País, antecipando-se mesmo o contributo territorial dos novos fundos marinhos por via da nossa candidatura à extensão da Plataforma Continental (PC). Infelizmente, as tentativas de trazer o tema para a agenda política têm sofrido flutuações e os resultados demorado a aparecer. Um alento apareceu agora com o abrangente trabalho Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica e Social de Portugal 2020-2030”, da autoria do Prof. António Costa Silva (05JUL20), onde o mar não foi esquecido, enquanto fonte de riqueza económica e dinamizador de toda uma fileira de novos pólos de actividade económica, o que pressupõe a responsabilidade de o proteger e vigiar, e a exigência de capacidades e meios que cumpram as missões militares e não-militares de defesa e segurança, em ordem ao cabal exercício da autoridade do Estado nos espaços marítimos sob soberania, jurisdição e, ou responsabilidade nacionais.  

Como terceiro e último ponto deste enquadramento, coloca-se a questão da Defesa na sua articulação funcional FFAA e FSS, dois sectores com diferenciado tratamento a nível orçamental e de investimento, de que é exemplo próximo o caso da UCC da GNR.

 Feita esta referência aos eixos político-estratégicos, sublinharei o facto de haver países que aproveitam, melhor ou pior, os seus recursos naturais, geográficos e humanos, pelo que, se quisermos evitar a divergência da Europa, teremos de maximizar, estratégica e racionalmente, o potencial de activos e oportunidades, sublinhando-se aqui o critério da racionalidade, em termos de recursos disponíveis ou latentes, marinhos incluídos, que no seu conjunto, sabemos bem que não abundam. Nesta óptica, os diversos sectores do nosso cluster marítimo não podem ficar para trás, assim como as inerentes exigências de segurança marítima, que é isso que está em causa neste simples texto, e nesse sentido, o respectivo conceito estratégico deve estabelecer as funções dos vários intervenientes e actores na matéria.

É neste nosso teatro operacional que podem irromper diversas ameaças e riscos, convencionais ou emergentes, tanto de carácter intencional, como de carácter acidental ou natural, com evidentes implicações no uso e autoridade do Estado no mar, uma área que convoca a acção da Marinha, através da sua estrutura, leque de missões e recursos aplicados desdobradamente nas vertentes defesa nacional e interesse público no mar, de forma contínua e potenciando a eficiência e a eficácia do duplo exercício. 

No desempenho relativo à segunda vertente e no que ao direito interno diz respeito, destacam-se três quadros de actuação, distintos, mas beneficiários de sinergias, de modo a:

  •  garantir a segurança e o exercício da autoridade do Estado no mar, na decorrência de competências atribuídas desde a sua fundação, por legislação nacional;
  •  assegurar o exercício de funções no âmbito da Autoridade Marítima Nacional (AMN), cujo modelo institucional remonta ao final do séc. XVIII, tendo em vista a efectivação desse poder de autoridade, nomeadamente nos domínios da vigilância e de fiscalização e policiamento dos espaços marítimos, sob soberania ou jurisdição nacional;
  •  cooperar com as demais Forças e Serviços de Segurança [(no quadro da Lei de Segurança Interna e da Lei Orgânica de Bases da Organização das Forças Armadas (LOBOFA)] e bem assim colaborar com as autoridades de protecção civil (tendo em atenção a mesma LOBOFA e ainda o previsto no Capítulo VI da Lei de Bases da Protecção Civil).
Julgamos ficar clara, ainda que resumidamente, a dimensão do contributo da Marinha de Guerra Portuguesa (MGP), com expressão ao nível da defesa militar e no apoio à política externa; do patrulhamento de vigilância e fiscalização e do desenvolvimento económico, científico e cultural, com forças, unidades operacionais e os outros meios, regidos pelo respeito estrito do direito interno e do direito internacional aplicáveis.

Antes de concluir, retomo o ponto de partida desta análise (“navio-patrulha” da UCC, para “emprego operacional no mar territorial – da baixa-mar até às 12 milhas – e, quando necessário, extensível até às regiões autónomas para colaboração com as respectivas autoridades”), para assinalar a realidade funcional e o teatro operacional que incumbem às forças da MGP e da GNR (UCC), incorporando capacidades, meios e forças susceptíveis de operarem em duplicação de missões e esforços, no mínimo no lençol das 12 milhas marítimas, o que nos permite formular algumas notas conclusivas de cariz interpelativo, tendo por base a aquisição desses meios oceânicos para a GNR/UCC:

  •  crise da dívida e insuficiência dos níveis de poupança e investimento, têm influenciado a frágil situação económica (estagnação e fraco desenvolvimento do país), realidade que obrigará a um alinhamento e coerência entre os objectivos traçados pela política e a linha de acção estratégica para os atingir, em função dos (escassos) recursos de múltipla natureza que venham a estar disponíveis;
  •  um desses objectivos (políticos), como tem sido afirmado publicamente, centra-se no potencial da janela de oportunidade e de liberdade que nos é oferecida pelo mar, uma mais-valia percepcionada quase que unanimemente pelos portugueses;
  •  aqui entronca a premissa securitária e que tem a ver com o tandem exploração da economia azul–responsabilidade de proteger e fiscalizar, que se traduz pela efectivação da autoridade do Estado no mar, onde pontifica a MGP, com actuação funcionalmente multidisciplinar (missões militares e não-militares ou de interesse público), como ainda recentemente fez questão de sublinhar o Senhor Ministro da Defesa Nacional, através da apologia do sistema de “duplo uso[2];
  •  nesse exercício sobressai a base conceptual do “duplo uso”, que visa a eficiência e optimização de recursos, em base holística e sinergética, conforme preconizado no Conceito Estratégico de Defesa Nacional (CEDN 2013), habilitando-a ao importante papel de garante da soberania e jurisdição nacionais, juntamente com a Força Aérea Portuguesa (FAP), no espaço marítimo que corresponde a mais de 82% da área terrestre do conjunto dos 27 E-M da UE, o que não é fácil, atendendo a que o nosso poder militar tem sofrido erosão nas últimas décadas, ocupando em 2020 um modesto lugar (61º) no conjunto dos 138 países considerados no relatório anual do Global Power Fire [3]. No extremo oposto situaríamos o Reino Unido que acaba de anunciar um aumento de 16,5 mil milhões de libras (18.500 milhões €) no orçamento da Defesa para os próximos quatro anos, um acréscimo de 10% que constitui o maior investimento dos últimos trinta anos, com fundamento na mais competitiva e perigosa situação internacional do que em qualquer momento da guerra fria;
  •  maior estranheza, portanto, quando a contenção a nível das dotações orçamentais e investimentos públicos contemplados nas leis de programação militar, no âmbito da Defesa, não se vislumbra, aparentemente, nos demais domínios da segurança, abrindo a porta a situações de duplicação funcional atribuídas a várias entidades e relativas a comuns áreas de actuação;
  •  esta proliferação de actores nos mesmos palcos operacionais tem sido evitada em países de pequena e média dimensão, e, por maioria de razão, o deverá ser naqueles que se defrontam com limitações financeiras e demorados períodos de regeneração económica, recorrendo ao referido sistema de “duplo uso, garante de uma operacionalidade de dupla face (missões) e “duas em um” (ramo), numa amplitude em que se tende para a optimização dos recursos;
  •  com uma ou outra tergiversação no acolhimento deste princípio ao nível da decisão política, foi isto que aconteceu até agora, e que o programa de aquisição do navio-patrulha da UCC da GNR veio reavivar, ao colocar em causa a unidade e coerência estratégica da decisão política;
  •  há muito que a Armada tem por missão a vigilância e fiscalização das nossas águas costeiras e inter-arquipelágicas, materializando essa protecção com a dupla faceta defesa militar (ameaças à segurança nacional) e interesse público (safety e outras ameaças como a pirataria marítima, o narcotráfico e outra criminalidade, as migrações ilegais, etc,), esta última, aquela que a UCC pretende executar até às 12 milhas de todo o mar territorial português;
  •  tal ambição operacional trará custos ao país que vão muito para além do valor de aquisição dos meios navais, porquanto há que contabilizar os gastos da actividade operacional, os recursos exigidos pela formação (ainda por cima em países estrangeiros) e as avultadas despesas com a manutenção e reparação dos navios, julgando-se de todo pertinente questionar se alguém já encetou esse exercício e finalizou o seu balanço;
  • com a extensão da missão atribuída à GNR, iremos assistir à coexistência de dois intervenientes no controlo das águas costeiras, senão para áreas mais distantes, com evidente duplicação de meios materiais e financeiros, sem descartar potenciais atritos que possam irromper no cumprimento das respectivas missões, bem ilustrativo do erro, inutilidade e desperdício para que foi arrastado o Estado, sem atenuante, na medida em que é o responsável pela criação de problemas a si próprio e a todos os contribuintes portugueses que os têm que suportar. A esse desmando, juntaríamos o aspecto impositivo de um teatro operacional, a passar necessariamente pela articulação do emprego e coordenação dos meios, aliados ao indispensável exercício de comando e controlo na sua actuação, cuja prática no terreno gostaríamos de conhecer;

A terminar, permita-se que repise o que verdadeiramente julgamos estar em jogo. Se adicionarmos à porção terrestre do território toda a extensão das águas nacionais, e se soubermos ser consequentes, edificando, com racionalidade e rigor genético, capacidades para vigiar, controlar e intervir nesse espaço, então poderemos aspirar a deixar de ser um país pequeno, tornando-nos credível e relevantes no seio dos parceiros e aliados.

A acção do Estado no mar terá, por isso, de ser capaz de promover a governança, garantir o equilíbrio e a qualidade – factores essenciais para o desenvolvimento e para a exploração sustentável –, visar a ordem e o respeito pela lei, e fomentar os valores identitários, que agreguem a sociedade, em geral, e os cidadãos, em particular, em torno de um projecto e de objectivos compreendidos e aceites por todos. Será assim mais fácil investir no mar, mesmo em contraciclo. Se não o fizermos outros o farão por nós, tirando disso os devidos proveitos. Sempre assim foi, e não será diferente no futuro que já nos bate à porta.

Este novo ciclo de “relação Portugal-Mar” que muitos insistem em propor, precisa de ser devidamente ancorado no plano institucional e orgânico, para não ficar a navegar à vista ou mesmo à deriva, assim como objecto da institucionalização que lhe assegure a continuidade estratégica de legislatura em legislatura e de geração em geração, para que o mar tenha lugar cativo enquanto trave estruturante do pensamento e desenvolvimento português.

Para o efeito, há que acreditar que possamos estar ainda a tempo de limitar danos, se a avaria puder ser reparada ….

 António Rebelo Duarte

 


[1] V/Alm REF A.Reis Rodrigues e J.  Pires Neves e Prof. jubilado do ISCTE João Moreira Freire, publicados, respectivamente, nas edições on line do “Diário de Notícias”, de 17 e 19 NOV20, e no “Público”, de 22NOV20; 

[2] Em artigo publicado no Diário de Notícias, de 21NOV20, e cujo conteúdo poderia ser útil a outros parceiros políticos;

[3] O Relatório GFP review for 2020, classifica, num grupo de 138 países, Portugal na posição 61, muito atrás da Espanha (20) e atrás da Argélia (28), Angola (56) e Marrocos (57), com um índice de 0.8612 (entre 1.0000 e 0.0000, este como valor considerado perfeito) - https://www.globalfirepower.com/countries-listing.asp;

 

 

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