sexta-feira, outubro 07, 2022

F.S.Lourenço

A Marinha em Moçambique

As praxes no Niassa

A Marinha de Guerra Portuguesa, o Ramo mais antigo das nossas multicentenárias Forças Armadas, sempre sustentou a sua imagem e desempenho num quadro de relacionamento social único, peculiar, inconfundível e universalista, assente no seu capital humano. Tal permitiu-lhe, como regra, optimizar os restantes vectores estruturais, de natureza material, financeira ou organizacional.

A Marinha que eu conheci foi assim, sendo mais evidente esta implícita hierarquia de valores em fases de grande crescimento na quantidade e qualidade de meios, como ocorreu na década de 60 do século passado com a aquisição de um avultado número de navios de superfície e de submarinos, a que correspondeu um significativo incremento nas suas capacidades tecnológica, científica e operacional. Como é sabido, esta situação repetiu-se em momentos posteriores, embora com características e dimensões diferentes.

Certamente que diversos factores concorreram, ao longo dos tempos, para que esta realidade – organização de cunho marcadamente cosmopolita e inerente savoir-faire - fosse a marca de água da Corporação: o secular convívio com outros povos e sociedades, a abertura a novas realidades com o conhecimento de novos horizontes e, mais contemporaneamente, a participação em Organizações Internacionais Militares, como a NATO, à qual aderimos desde a primeira hora, há mais de sete décadas, privando assim com sociedades das mais evoluídas do primeiro mundo, aprendendo muito mas igualmente afirmando os valores e características que nos identificam e referenciam.

E não será por acaso, mas garantidamente consequência da idiossincrasia do Ramo do botão de âncora, que existe em Portugal uma organização ilustre e prestigiada, a AORN (Associação de Oficiais da Reserva Naval), prosseguindo os mesmos valores e integrando um significativo número daqueles que durante quase 2 décadas, no cumprimento do seu serviço militar, escolheram a Marinha para ajudar, de forma brilhante, na gesta de África e continuando, ao longo dos tempos, a “defender a Marinha, Portugal e o Mar”, conforme rezam os seus Estatutos.

É neste contexto de dimensão social que introduzo o fenómeno das praxes, prática generalizada na instituição naval, desde o início da carreira do militar, passando por situações específicas frequentemente associadas a locais distantes da metrópole europeia.

A minha visão e, também, a minha experiência nesta área de relacionamento social impelem-me para, de forma inquestionável, assumir que em regra a existência e a prática das praxes com que convivi foram uma mais-valia para a Marinha, para os seus órgãos e, principalmente, para as pessoas, os militares envolvidos. Fê-los crescer, estruturar princípios, valorizar as relações pessoais, assumir comportamentos ajustados à profissão (como se sabe, muito baseada neste tipo de valores) e reconhecer linhas vermelhas a não ultrapassar.

Comigo, foi esta a realidade. E sei que muitos outros (naturalmente, da minha geração) comungam desta avaliação.

Claro que, desde sempre, se verificaram desvios à boa prática das praxes; mas, igualmente, existiam mecanismos de controlo e supervisão que, em tempo oportuno, os corrigiam ou eliminavam. A Escola Naval é um bom exemplo disso mesmo: o “Comodoro” da praxe, cadete do último ano, eleito pelos seus pares, intervinha de motu proprio, ou quando solicitado, em defesa dos sãos princípios daquela prática.

Não se pode também ignorar a imagem que as praxes têm, hoje, junto dos portugueses. Todos sabemos que tal juízo muito negativo resulta de cenas aberrantes, grosseiras, algumas roçando a obscenidade, visando objectivos de exibicionismo alarve, para alimento de certas redes ditas “sociais”, com que alunos de alguns estabelecimentos de ensino superior nos têm brindado ao longo dos últimos anos e a que os verdadeiros responsáveis vão reagindo com preocupante indiferença, não actuando por forma a acabar com essas poucas vergonhas no espaço público, antes as tolerando de forma cúmplice.

Fica, portanto, evidente que acabámos de falar de realidades totalmente diferentes.

Em Moçambique, a partir de meados dos anos 60 do século passado, a Marinha passou a dispôr de uma Base Naval em Metangula, na margem leste do lago Niassa, a cerca de 100 km da cidade de Vila Cabral (agora Lichinga), ponto terminal da célebre linha do “combóio do Catur”, via ferroviária que transportou de Nacala para o interior milhares de militares dos 3 ramos das Forças Armadas.

A Base de Metangula, criada na povoação de Augusto Cardoso, foi um importante instrumento de acção da Marinha na extensa área da parte portuguesa do Lago Niassa. Ocupando a península de Metangula, fronteira ao monte Tchifuli, gozava de enorme autonomia, dispunha de instalações magníficas e de todo o equipamento necessário, não esquecendo as necessidades de lazer das guarnições e famílias (estas, alojadas em habitações no exterior da Base), acolhendo várias centenas de militares e civis, em condições invejáveis, atendendo ao padrão geral das estruturas militares nacionais à data, em África. Tinha, como vectores de projecção, mais de uma dezena de meios navais, entre Lanchas de Fiscalização e Lanchas de Desembarque, Médias e Pequenas. E, tendo como “vizinhos” uma unidade do Exército (o comando do Batalhão de Caçadores atribuído àquela zona), disponibilizava-lhes o apoio logístico necessário, fornecendo a energia eléctrica às instalações.

É então com base nesta estrutura da Marinha que se esboça o que, durante os 2 primeiros anos da década de 70, foi o guião-tipo de “recepção” aos oficiais checas (ou maçaricos…) quando se apresentavam em rendição individual.

Normalmente, o visado chegava via aérea a Vila Cabral, vindo da Beira; de Metangula, saía um oficial, acompanhando o piloto num pequeno avião da Marinha, um monomotor Cessna 182 de 4 lugares (em termos formais, pertencente ao Aeroclube de Metangula…) para a adequada recepção do novo elemento.

Ao recém-chegado era sugerido que adquirisse, numa pastelaria da cidade, pastéis de nata para o jantar desse dia, na Messe. No aeroporto, seguia-se então o embarque no Cessna, que, após autorização, se dirigia ao limite da pista para iniciar a descolagem. Mas, antes, ainda com o avião imobilizado, o piloto ia fazendo perguntas comprometedoras ao oficial acompanhante, tipo “este botão, aqui no tablier, é para cima ou para baixo? E os flaps, como é que funcionam”?

A tudo isto, o pobre do visado assistia, no banco traseiro do avião, com crescente preocupação (entretanto, e ainda antes do embarque e aproveitando uma “suposta” distracção do piloto, já tinha sido informado pelo acompanhante que este era pouco hábil e quase estreante na função, tinha mesmo tido um pequeno acidente na semana anterior, mas “se Deus quiser, há-de tudo correr bem”).

Iniciada a descolagem, o piloto “comia” metade da pista, sem conseguir tirar o avião do chão; com alguns impropérios à mistura, lá o fazia subir um pouco, mas para logo de novo o deixar cair. E o pobre, cada vez mais nervoso…até que, quase no fim da (extensa) pista, o avião finalmente descolava e subia.

Iniciado o trânsito (curto, de cerca de meia hora), as vicissitudes não diminuíam; já no terço final da rota, o avião, ao ultrapassar a cordilheira de Maniamba (altitude aproximada de 1800 metros), voava próximo do topo das elevações, induzindo uma proximidade preocupante para os novatos; nessa altura, o piloto descontraidamente informava que, recentemente, ali tinha sido atacado, tendo escapado por pouco…e o recém-chegado afundava cada vez mais no banco traseiro, passando a ostentar um visual de tom amarelado.

Na preparação para a aterragem na pista de Metangula - esta, sim, curta (menos de 1000 metros), de terra batida, embora permitisse a operação de Dakotas, começava e terminava nas águas do Lago - o quadro agravava-se sobremaneira; já na aproximação, o piloto voltava a questionar o parceiro do lado sobre vários elementos técnicos, demonstrando grande desconhecimento sobre a execução da manobra. Como, naturalmente, o questionado não sabia responder, tal “obrigava” a um contacto de emergência (que só existia para o recém-chegado) com a torre de controlo, em que as perguntas mais “estranhas” eram feitas e as respostas passadas ao piloto, que actuava em conformidade.

Com a “vítima” já praticamente desfeita, ainda lhe era pedido que tivesse cuidado com a caixa dos pastéis de nata, não fosse cair com os solavancos e as manobras bruscas que estavam a ocorrer…algumas vezes, a reacção do “desgraçado”, em total desespero, era a de, com expressões aqui irreproduzíveis, informar que “queria lá saber” dos bolos…

Finalmente, após borregar duas ou três vezes, aumentado o nível já extremo de pânico do novo elemento, o avião lá pousava na pista.

Mas os problemas estavam ainda longe de terminar: infelizmente, o motor do Cessna parava antes de atingir o hangar, onde também estava a equipa de boas-vindas ao novo membro; então, como é que era possível chegar ao destino? A solução era simples: com o piloto dentro do avião, este era empurrado pelo recém-chegado até ao final (às vezes, cerca de cem metros…). Aí, para além do pessoal da sua nova Unidade, estava o “agente” da Pide/DGS...mas com funções alargadas, como a seguir se verá.

O Padre e o Agente
Este personagem, sempre de poucas falas e com semblante patibular, começava por lhe aplicar uma multa, por ter chegado depois da hora limite, que era sempre “definida” em conformidade (essa multa, à qual o pagante por vezes reagia, alegando que tal facto não era da sua responsabilidade – argumento liminarmente rejeitado -, revertia para o bar da Messe de Oficiais); em seguida, era feita uma rigorosa “inspecção” aos seus pertences, num tom ameaçador e provocatório, sendo-lhe apreendidos todos os livros, por suspeita de conterem propaganda subversiva e até o pó branco, para aplicação nos sapatos da farda, ficava retido por suspeita de poder ser droga… Entretanto, o “agente” informava-o, mantendo o ar ameaçador, que o material retido lhe seria devolvido no dia seguinte, caso não se confirmassem as suspeitas levantadas…

Iniciava-se, de seguida, a viagem (curta, cerca de 450 metros) para a Base. Mas, ainda antes da sua instalação, o recém-chegado era conduzido à enfermaria, com o objectivo de “tomar a vacina contra o paludismo” e efectuar um exame médico para “aquilatar” da sua disponibilidade física…


Aí era recebido pelo “enfermeiro”, cargo exemplarmente “desempenhado”, à época, por um Comandante de Lancha do Malawi, que envergava uma bata de aspecto abominável: sujíssima, com nódoas tipo sangue, rôta, a criar um quadro inenarrável.

O “profissional” de saúde começava por ministrar ao “paciente” a dita “vacina”, na dose de uma colher e que não era mais de que um conhecido laxante, que produziria os seus efeitos nas horas seguintes; depois, pedia-lhe para subir (e descer) de uma cadeira umas dezenas de vezes, medindo-lhe a tensão de forma muito pouco convincente…

Já meio esmagado por estes acontecimentos, era então conduzido ao alojamento.

Chegada a hora do jantar na Messe de Oficiais, na qual tinha também lugar o temido “agente” da Pide/DGS, eram-lhe passadas as instruções quanto ao cuidado a ter com esse indivíduo (situações houve em que o desafortunado, quando o via entrar na Messe e ainda indignado com as cenas ocorridas à saída do avião, pretendia reagir, do que era prontamente dissuadido, pelas “graves implicações” que daí poderiam ocorrer…

Antes de se iniciar a refeição, o “padre” iniciava uma reza, com fraseologia pouco convencional, à qual os comensais correspondiam com o ar mais convicto e crente deste mundo; o novo membro, muito baralhado, tentava integrar-se no grupo, acompanhando com dificuldade os rituais daquela “estranha” prática religiosa…

Depois do jantar, o cenário mantinha-se até ao fim do serão, com os novos camaradas a agradecer a gentileza dos bolos, mas sempre com o “agente” da Pide/DGS a visar o neófito com um ar desconfiado e hostil…

Quando se tratava de um novo Comandante de Lancha, o programa sofria uma “change”: após o fim da refeição e do convívio, o Comandante cessante e o novo dirigiam-se já noite fechada ao cais, embarcando na Lancha, porque era necessário cumprir uma missão que não tinha sido possível adiar; claro que essa missão tinha obviamente que ser agitada q.b.: ainda o navio não tinha saído da baía iniciava-se um “feroz” ataque a partir da margem, com fogo nutrido que rompia o escuro da noite, ecoava no Tchifuli e provocava a maior das confusões e “pânico” a bordo.

Depois de o Comandante “conseguir escapar” desta cilada sem baixas ou danos materiais, a Lancha regressava à Base, com o protagonista deste longo dia totalmente “impróprio para consumo”…

Terminada a jornada, era o momento para, finalmente, deixar o novo elemento recolher ao seu quarto para descansar e recuperar de tudo o que tinha vivido.

Nalguns casos e quando a chegada a Metangula ocorria mais próximo da hora do jantar, o programa era adaptado, eliminando-se algumas das cenas descritas e incluindo uma outra: para não atrasar a refeição, o recém-chegado, com a bagagem, era conduzido directamente à Messe; a meio do jantar, o Despenseiro aparecia, com ar compungido, a comunicar que tinha surgido uma situação inopinada e que não era possível disponibilizar, para aquela noite, instalações para o sr. Tenente…pelo que já tinha colocado uma cama no hall de uma das residências, junto à porta para o exterior, onde ele teria que passar a noite; e igualmente o alertava para o perigo decorrente de uma cobra (das mais venenosas, claro) que andava por ali e ainda não tinha sido apanhada…

E a primeira noite terminava mesmo assim…

Mas havia sempre o day after e, manhã cedo, tempo das formaturas para serviços, quando o mal refeito “novo membro” se dava conta de que o execrável “agente da Pide/DGS” estava agora, ou a comandar uma Unidade de Fuzileiros, ou um Serviço, ou, ainda a Esquadrilha de Lanchas, e que o padre, afinal, tinha subitamente perdido a vocação e assumido uma carreira militar laica, começava na sua cabeça a desconstrução da “realidade virtual” vivida no dia anterior e o início do conhecimento do mundo que o acolheria a partir de então.

E começava igualmente, para o visado, uma nova fase da sua vida militar, intensa, respaldada nos valores induzidos no início deste texto – o respeito por cada um, a sã camaradagem, o convívio social aberto, o “bom senso” naval – cujos efeitos, regra geral, perduraram nos tempos que se seguiram e cujas marcas ainda hoje são visíveis.

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