FSLourenço
(NOTA PRÉVIA: Nunca pensei que algum dia viria a escrever este texto)
“ AS RAÍZES QUE NOS FAZEM
Os
homens são sobretudo feitos de tempo e das suas circunstâncias. É
assim que a humanidade liga gerações, renascendo sempre e lutando
pela sua eternização. Cada homem é enraizado em si mesmo,
assimilando as suas experiências e a sua forma de viver e sentir o
mundo e a sociedade onde se insere, juntando assim a sua própria
capacidade de livre-arbítrio, que lhe dá individualidade e sentido
único.
Dentro
das suas raízes, sempre.
O
homem é, portanto, um ser social, que se liga em comunidades, estas
situadas em territórios, de convenções, de línguas, de culturas e
espaços físicos….”
(Francisco Madelino, Presidente da Fundação INATEL, in “Tempo Livre”, Jul-Ago 2024)
O meu pai foi Marinheiro, barra 33. Eram os tempos da Brigada de Marinheiros, da Escola de Mecânicos, das Canhoneiras Diu e Ibo, dos submersíveis, do Corpo de Marinheiros, da “Sagres” –no fim, “Santo André”- que o meu Curso (Miguel Corte Real), o CR, ainda conheceu em aulas de Marinharia e Arte de Marinheiro, enfim, a Marinha de antes da guerra, reforçada com meios que o então Ministro das Finanças tinha disponibilizado, que cumpria com dignidade e a possível eficiência as exigentes e vastas missões que o Mundo Português de então lhe impunha nos diversos continentes.
Nessa época, viviam-se os primórdios da assistência social na Marinha: conheci a ASA (Acção Social da Armada), instalada no extremo poente do edifício da actual ACM, o nosso “Ministério”, com entrada pela porta que ainda hoje funciona, desenvolvendo algumas actividades, entre elas consultas médicas; lembro-me de ter ido várias vezes, com a minha mãe, ao dr. Rocha Borges, presumo que médico civil.
Também por esses tempos visitei o (embrionário) Museu da Marinha, com o seu espólio guardado no Palácio do Conde de Farrobo, perto de minha casa, nas Laranjeiras, junto ao Jardim Zoológico, aguardando a mudança para as muito nobres e dignas actuais instalações.
Conheci algumas das Unidades que acima referi, muitas vezes acompanhando o meu pai no seu trabalho, recebendo o afecto do pessoal das guarnições, nomeadamente das chefias, já na altura traço social característico da Marinha e que vim a reconhecer, identificar e praticar anos mais tarde, quando chegou a minha vez. E lembro-me de que, muitas vezes após cerimónias oficiais (dias da Unidade, por exemplo), os militares e famílias se reuniam em piqueniques na Mata do Alfeite, alimentando o estômago e a alma, consolidando a posição da Marinha como primus inter pares em termos da sua realidade social.
Acho, dou como certo, que muita da minha predisposição para ser Marinheiro assentou nessas experiências de vida que cumpri.
A rematar, recupero uma imagem que mantenho forte ao longo da vida: ia muitas vezes esperar o meu pai ao Terreiro do Paço, também acompanhado pela progenitora, sentados naqueles (para mim) icónicos bancos de pedra que lá se mantêm e de que ainda hoje usufruo quando passo nas proximidades.
Essa era a Marinha daqueles tempos
Os anos 60 do século passado terão sido para a Marinha a década de ouro da era contemporânea, com a inclusão de novas fragatas, corvetas, submarinos e outros meios navais de menor relevância. Poucos anos após, ocorre o Movimento de 25 de Abril de 1974, que, entre outras, teve a consequência de evidenciar a difícil situação em que a generalidade dos militares reformados (antigos militares, segundo a curiosa terminologia da actual Administração) se encontrava, com pensões, em muitos casos, no limiar da condição acima da de pobre, a de remediado.
E por isso, a Marinha, os Marinheiros de então, mobilizou-se, criou condições para que os reformados que quisessem ou necessitassem, voltassem ao serviço para poderem vir a ter uma reforma mais digna, mais condicente com as crescentes dificuldades que se lhes deparavam.
E foi assim que o meu pai, já bem sessentão, reassentou praça em Alcântara, cumprindo, com o entusiasmo de um adolescente, meia dúzia de meses de serviço, saindo para nova baixa, a definitiva, com muita pena e tristeza por perder o que tinha vivido naquele limitado período, mas passando a usufruir de uma pensão significativamente melhorada.
Essa era a Marinha daqueles tempos
O meu Curso, como a generalidade os que saíram da Escola Naval, foi assinalando, de forma digna, a passagem das datas redondas que a inexorável fita do tempo vai produzindo. De uma forma geral, as cerimónias associadas, propostas e aceites pelas Administrações da Marinha, eram cumpridas com orgulho, espírito de coesão e genuíno empenhamento de todos os envolvidos; o século passado e a infância e adolescência do que hoje percorremos são disso testemunha.
Essa era a Marinha daqueles tempos
Casei, em 1968, na Capela de Nossa Senhora do Mar, na Base Naval de Lisboa, no Alfeite. Habituei-me, ao longo dos anos seguintes, também já reformado, a visitar, com a companheira, aquele templo, principalmente nas datas conspícuas associadas ao momento em que o Capelão Ferreira de Melo assinou o irrevogável “auto de posse” (mútua…).
E depois íamos almoçar, algures na margem sul. Eram dias especialmente bons, éramos bem recebidos numa das nossas casas, a BNL, sabia bem visitar os locais – Escola Naval, CEFA, Estação Naval, Messe de Oficiais, etc. – onde comecei a ser feliz, onde moldei o carácter e a personalidade que hoje carrego comigo, certamente com muitos defeitos, mas talvez com algo que se tenha aproveitado.
E foi a esse espaço sagrado para nós, Marinheiros – a Base Naval – que levei muitas vezes os filhos, os netos, alguns amigos, afirmando o orgulho por esse privilégio e ajudando a engrandecer a imagem da Marinha nessas pessoas.
Essa era a Marinha daqueles tempos
Desde, pelo menos, os primórdios do século passado, a Casa da Balança foi (como aliás consta da placa colocada junto à porta para o exterior) o ponto de encontro de militares da Marinha, nomeadamente oficiais, quando se dirigiam ao “Ministério” para qualquer encontro combinado com camaradas. Cumpriam, assim, a vocação daquele espaço, muito simbólico para todos nós, que durante mais de um século acolheu reservistas, reformados e pessoal do activo, em permanente e normal convívio, dando um importante contributo para a ligação entre gerações, dotando a Marinha de uma envolvência e relacionamento social ímpares. As paredes desta sala testemunharam, ao longo de muitas décadas, relevantes momentos das Histórias da Marinha e de Portugal (há pouco mais de cem anos, um Presidente da República ali homenageou a Marinha em razão de feitos ilustres de alguns de nós; também, durante a segunda metade do ano de 1974, importantes reuniões ali ocorreram).
Mas,
Há cerca de uma dezena de anos, alguém decidiu.
Decidiu fechar a porta da Casa da Balança, que passou a abrir apenas para cerimónias oficiais (que até então sempre tinham tido lugar, em conjunção com o seu usufruto pelos militares).
E foi assim que se teve que fazer uma pequena correcção no ritual com que se passaram a combinar os encontros: em vez de “encontramo-nos na Casa da Balança”, passou a usar-se “encontramo-nos à porta da Casa da Balança”. E aqueles que, como eu, se orgulham da sua condição de comunicativos para apreciar a placa, marco do nosso pioneirismo nas comunicações radiotelegráficas militares, colocada no canto SW da sala, passaram a só poder espreitá-la das janelas, reconfortados com a constatação de que ela ainda lá está.
Também por esta altura, um pouco mais tarde, assistimos a mais mudanças, numa onda, eu diria, sinal dos tempos e, talvez irreversível, de afirmação de que o futuro só poderá ser construído pelos que agora estão de quarto, enquanto os que já saíram (sempre os mais velhos…) são empurrados para o paiol da amarra na periferia da Marinha das suas vidas.
Assim, a Sala de Refeições dos Capitães-de-Mar-e-Guerra, antigo e importante espaço de convívio de pessoas com experiência na sua vida profissional e que, no fundo, reconhecia a importância deste escalão no universo da Corporação, fechou.
Com o fecho, apagou-se mais um dos faróis que durante muitas gerações ajudaram a definir o rumo de uma convivência ímpar no nosso universo castrense, alicerçada nos princípios do relacionamento social naval e na experiência dos contactos de há muito com marinhas estrangeiras, designadamente da NATO, que ajudámos a criar desde o primeiro dia.
Anexa a esta Sala, existia uma outra, a Sala de Estar destinada aos mesmos oficiais, que usavam este pequeno espaço, de sóbria dignidade, aguardando em convívio o momento da refeição.
Um dia, há cerca de 3 anos, terá sido considerado, por um responsável, que era necessário (e, talvez, urgente) encontrar um local para arrumar peças de mobiliário sem espaço para continuarem nas salas de refeições do complexo da Messe de Oficiais.
E o eleito foi a Sala de Estar dos Capitães-de-Mar-e-Guerra, que assim encerrou o seu percurso de décadas, no contributo para a imagem do nível e da dignidade que a Marinha, até então, orgulhosamente afirmou.
Esta é a Marinha destes tempos
Um dia, o nosso Curso passou mais uma daquelas datas especiais, não me lembro se foram os 25 anos, os 50, ou os 60.
Do programa constava uma apresentação de cumprimentos ao oficial mais antigo colocado na área da BNL, com gabinete no edifício do Largo do Palácio.
Éramos 7, nesse dia, a representar o CR (o tempo não perdoa…); fomos recebidos, à entrada, por ajudante de campo, e ficámos a saber como ia ser: os almirantes, dois, subiriam a cumprimentar, os restantes (talvez porque fossem uma multidão) iriam para o jardim do edifício, já sem pavões, aguardando, de pé, que o desiderato, lá em cima, se concretizasse.
Ainda subsistiu, durante um breve instante, a esperança de que alguém aparecesse à janela para nos acenar, seguindo o exemplo dos Papas no Vaticano; mas não, ficámos apenas com a simpatia e o sentido de cumprimento do dever do nosso camarada acompanhante.
Para memória futura, conseguimos ainda que um de nós fosse fazer umas fotos do acto, “autorizado” a permanecer na sala o tempo estrito para esse fim.
Esta é a Marinha destes tempos
Um dia destes, há-de passar mais uma data especial do meu casamento, e talvez eu (se ainda cá estiver, com ela) queira cumprir o ritual do costume, a visita à Capela da BNL; mas irei ter que me ajustar à realidade dos tempos: de acordo com as normas que a presente Administração determinou para o acesso de qualquer militar da Marinha nas situações de Reserva e Reforma (as gerações mais velhas…), à BNL, o fervor religioso que me assolará vai ter que ocorrer uma semana antes da data, para que eu possa, em mail enviado com essa folga, confessar ao decisor que aspiro a concretizar esse desejo, que talvez devesse ser considerado do foro íntimo.
Se cumprir tudo aquilo para que agora sou convocado, não esquecendo, para além dos nomes, completos, do casal, posto e número de identificação, cartão de cidadão da acompanhante, a marca, o modelo, a cor e a matrícula do veículo em que me deslocar, certamente, estou confiante, a decisão ser-me-á favorável.
Mas provavelmente não conseguirei fazer esse mail, é muito tempo no computador, muita mão-de-obra mental. Vou apoiar-me na memória que ainda tenho e reviver as anteriores visitas a esse local sagrado, esperando atingir o mesmo grau de conforto e satisfação interior que consegui nos tempos do antigamente.
Esta é a Marinha destes tempos
FSLourenço
Dezembro de 2024
3 comentários:
Oportuno e excelente artigo, quer na forma quer no conteúdo.
Muitos parabéns ao Lourenço
Fidalgo
Caro Comandante
Excelente artigo/retrospectiva!
Compreendo-o perfeitamente.
Forte abraço
Seu Imediato, Santos Carvalho
Recebemos o seguinte comentário com pedido de publicação:
O meu agradecimento ao Fernando Lourenço pela qualidade e oportunidade do seu artigo sobre o estado a que isto chegou na nossa Marinha. Com simplicidade e clareza descreveu o amor que todos nós continuamos a ter pela Instituição, pena é aqueles que tiveram a responsabilidade máxima do ramo pouco tenham feito por ela e hoje chegámos a este ponto de incertezas, em que a única certeza que temos é a incerteza com que vivemos. Mas o Saudoso Professor Adriano Moreira disse um dia num dos seus escritos que o poder da palavra se sobrepõe à palavra do poder.
Por isso a importância do escrito do nosso Camarada e Amigo Fernando Santos Lourenço.
Um muito amigo abraço,
Caldeira Santos
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