sábado, abril 25, 2020

1974, 25 DE ABRIL

1974, 25 ABRIL: UMA PARTICIPAÇÃO DIFERENTE
O Exercício Naval “DAWN PATROL”, do programa operacional da NATO para 1974, iria começar a sua fase de mar na 5ª feira, 25 de Abril, tendo uma boa parte das Unidades Navais participantes demandado o estuário do Tejo desde o início dessa semana, visando uma saída coordenada e conjunta no dia definido.
À data, estando a exercer as funções de Comandante do “N.R.P. Rosário”, Draga-Minas costeiro, último da classe “S. Roque”, fui nomeado Oficial de Ligação ao Grupo de Navios Holandeses participantes naquele Exercício, mantendo-se o meu Navio operacional.
Esta missão vinha decorrendo, desde o início da semana, sem qualquer incidente a registar, sendo resolvidos, de forma rotineira, todos os requisitos de natureza logística que a permanência de navios em porto suscita: água, energia, comunicações, resíduos, eventos de natureza social relativos às guarnições, etc.  
Igualmente, a vida, no país e concretamente na capital, se desenrolava com a normalidade e o ritmo a que as pessoas, de há muito, estavam habituadas.
Os jornais noticiavam investimentos em África – Angola, a aposta na transformação industrial da banana; Moçambique, investimento de 450.000 contos na formação profissional e na promoção das populações do Rovuma, Cabo Delgado.
Lá fora, coincidindo com a morte de Bud Abbott (cuja parelha com Lou Costello deixou ao Mundo filmes inesquecíveis), Israel (consulado de Golda Meir) continuava “desalinhado” com o Conselho de Segurança das Nações Unidas, num quadro vindo do passado e que se consolidaria em décadas posteriores.
Para o cumprimento das minhas funções, tinha ao dispôr uma viatura e respectivo condutor, neste caso, civil, de meia idade e que todas as manhãs se apresentava, com pontualidade e esmero irrepreensíveis, para o cumprimento do programa diário definido.
O planeamento respeitante à Força Holandesa, atracada no Cais do Jardim do Tabaco, definia a partida, no dia 25, para as 07h00m, o que impunha a minha presença nos Navios cerca das 06h30m. Como se tratava do último dia de missão, atendendo a que o condutor tinha tido um desempenho sem reparos e não era propriamente um jovem condutor militar, a decisão de o dispensar desta última tarefa surgiu naturalmente, acompanhada do justo agradecimento pela colaboração.
E assim, cedo numa manhã fresca e de céu pouco nublado, uniformizado a condizer, saí da residência, num bairro a NW de Lisboa quase na periferia, no carro particular; àquela hora, pouquíssimo trânsito nas ruas, o que não era de estranhar e, na generalidade das rádios – Emissora Nacional, Rádio Clube Português, Rádio Renascença, Emissores Associados –, quase só música, dita, séria, o que, talvez devido à hora matutina, não relevei.
Foram assim percorridas as zonas de Sete Rios, Praça de Espanha, S. Sebastião, Praça do Marquês de Pombal e a Av. da Liberdade até aos Restauradores, sem que qualquer sinal indiciasse, ou prenunciasse, algo de anormal.
Ao chegar à Praça D. Pedro IV, o quadro mudou: alguns carros parados, a tentarem, sem sucesso, entrar na R. do Ouro; surpreendido e já um pouco pressionado pelo tempo de que dispunha, decidi ultrapassar essas viaturas, utilizando o passeio de BB para tentar prosseguir, até que, quase a meio da rua, sou parado por um agente da PSP, num primeiro momento zangado, mas depois apenas preocupado e colaborante, quando constatou, pelo Uniforme, o tipo de condutor daquele carro “transgressor”…
Apontando para o fim da rua, o agente mostrava um Terreiro do Paço onde se identificavam carros de combate, do Exército, informando que estava ali “a haver um problema” e que não era possível lá passar.
Perante a premência de atingir o Jardim do Tabaco, cujo motivo lhe havia explicado, o agente sugeriu que tentasse o percurso via Cais do Sodré, para o que, ajudado por outro agente, me possibilitou o acesso à R. da Conceição, depois Calçada de S. Francisco, R. do Alecrim e, finalmente, àquela Praça.
Durante este curto trânsito, fui-me preparando para reagir a algo cujos contornos desconhecia, mas que me “garantiam”, desde já, a necessidade dessa medida cautelar…
Chegado, finalmente, à Praça Duque da Terceira, apontei para o início da Av. Ribeira das Naus; logo aí, ainda no limite da Praça, outro agente da PSP mandou-me parar, informando-me sobre a situação, que eu já conhecia do antecedente. Depois de lhe explicar o meu objectivo, deixou-me continuar, alertando-me para os obstáculos que certamente teria no curto prazo.
E assim foi: percorridas mais umas dezenas de metros e sensivelmente junto à entrada para as instalações da Marinha, novo stop, desta vez já por um militar do Exército, armado com Espingarda G3. Nesse momento, a minha preocupação, surgida nos minutos anteriores, era a de “expôr” a maior parte possível da farda através da janela, para rápida identificação e obviar a qualquer “movimento” precipitado do dedo que o militar tinha no gatilho…
Mais uma vez expliquei, agora a este surpreendido camarada, as razões que me levavam a estar ali, àquela hora, com aquele uniforme; sem ter percebido muito bem ou, provavelmente, nada, deixou-me avançar até à Praça do Comércio, aconselhando-me a que fosse devagar, para exactamente evitar reacções como as que eu tinha já congeminado.
Cumprindo as “instruções”, lá cheguei à entrada poente da Praça, onde fui novamente parado, agora por 3 ou 4 militares da mesma Unidade; já fora do carro, pela enésima vez expliquei porque ali tinha “aparecido” e porque necessitava de atravessar a Praça, para chegar aos navios da NATO. Um dos soldados, desconfiado, após uma apreciação sumária do conjunto que tinha pela frente – um Oficial da Marinha, com o uniforme 3B (esse detalhe, ele não conhecia…), acompanhado do vermelho flamejante de uma viatura civil – informou-me que só poderia passar se autorizado pelo “nosso Tenente”.
“Chamem então o Tenente”- pedi-lhes (de acordo com informação que obtive anos mais tarde, tratar-se-ia de um Oficial Miliciano, já falecido, que nesse dia comandava o 8º pelotão de Atiradores, responsável pela área da Praça do Comércio, integrado na força comandada pelo Capitão de Cavalaria Salgueiro Maia).
Pouco depois, o Tenente aparece, em passo de corrida, vindo da zona central da Praça; ao ver-me e após um breve esgar de estranheza, pergunta-me: “Olha lá, já prenderam o Ministro?”, ao que lhe respondi, mais ou menos: “Eh pá, não tenho a certeza, mas preciso de ir ali ao Cais do Tabaco, por causa dos navios holandeses da NATO, depois passo por aqui e já vemos isso…”
Após alguma hesitação, lá me autoriza a seguir, com um seco “Vai lá”, ficando a seguir o carro enquanto me afastava daquele local, agora decisivo teatro de operações.
Consegui, desta forma, chegar ao meu destino, dentro da hora prevista; o Comandante da Força, já conhecedor de que algo se passava, agradeceu a colaboração, tentando dispensar-me de estar presente até à saída dos navios e desejou-me felicidades para o próximo presente…
De saída do cais, decidi ir rapidamente a casa (por outro percurso – via Cabo Ruivo e 2ª circular), mudar para roupa civil e dirigir-me à BNL, onde já não foi fácil entrar: o Portão Verde estava fechado, com muita gente cá fora (operários do Arsenal do Alfeite, principalmente).
Chegado ao Navio, tomaram-se medidas para garantir a sua operacionalidade, em termos do equipamento e de pessoal, ficando o “N.R.P. Rosário” disponível para as missões que o Comando Naval do Continente viesse a entender atribuir-lhe.
Duma apreciação, meio humorística, a este “episódio”, ressalta-me a “intrigante” dúvida que aquele Tenente Miliciano terá tido, nos tempos mais chegados a essa data, quanto à verdadeira razão pela qual um 1ºTenente, fardado a rigor, lhe apareceu, àquela hora matutina, montado numa viatura de um belicismo totalmente desfasado do das restantes “máquinas” ali presentes…Já agora, deixo também a convicção de que terei sido, nesse dia, o único Oficial da Marinha a passar na Praça do Comércio, uniformizado de 3B, cuidado que a Marinha sempre tinha, em cerimónias ou momentos especiais, como aquele estava a ser.
25/4/2020
FSL

4 comentários:

JPVillas-Boas disse...

Por dever de "ofício" no tocante ao presente blogue, li esta história antes de todos os camaradas do CR, mas não quero deixar de, aqui e agora, testemunhar um agradecimento ao FSL por ter aqui partilhado connosco este episódio tão curioso e certamente irrepetível, com passagem por quase todos os principais locais da acção, quase todos já que o Largo do Carmo não ficava no caminho.

Costa Roque disse...

Brilhante recordação que nos leva uns bons anos atrás, a um passeio quase turístico e certamente curioso pela baixa de Lisboa durante o desenrolar de acontecimentos extraordinários que assim se apresentam a partir dos bastidores. Assisti ao período aqui mencionado a bordo do N.R.P. S. Gabriel, atracado no cais do Arsenal do Alfeite, enquanto se desenrolava a preparação dos monstros do sub-convés, já que o navio tinha recebido ordem para iniciar uma missão a Angola nesse mesmo dia. A missão viria a ser interrompida por decisão do Comando e posteriormente confirmada no fim do dia, tendo-se iniciado no dia seguinte.
Fica uma dúvida, relativa ao "bairro a NW de Lisboa", mas que parece ser Benfica, dados os trajectos referidos, e assinala-se a coincidência da cor da viatura civil, "vermelho flamejante", se associar com rara felicidade àquele bairro.

Cardoso Anaia disse...

O camarada FSL tem-nos trazido relatos da sua história, muito bem contados, como tem sido habitual, e que neste caso nos fazem regressar a um passado importante da nossa história.
Só tenho pena de não ter podido assistir no terreno a todo o seu desenvolvimento, dado que ainda me encontrava no HM deslocando-me de muletas.
E com recordar é viver obrigado Lourenço.

Fernando Santos Lourenço disse...

Agradeço muito a apreciação que entenderam fazer desta descrição. Mas, muito mais do que achar que foram gentis, sinto-a como demonstração de genuína fraternidade (sensação que me acompanha em crescendo nos últimos anos, quando "folheio" o dossier Curso CR).
Só duas pequenas notas: quanto ao Bairro, há já muito que deixei de conseguir articular certas palavras em língua portuguesa - por isso e enquanto não consegui mudar de casa,passei a socorrer-me da língua de Voltaire para referir a minha rua: "Route de Bien Reste".
E quanto à viatura, a explicação é simples: no meu estado normal, seria incapaz de assumir ter um carro daquela cor; mas, chegado do Ultramar, obcecado por sair naquele dia do stand já "servido" e havendo só uma unidade - aquela, não deu para escapar...
Abraços